quarta-feira, 21 de abril de 2010

O que é e para que serve a Matemática?


Muitos governos, dizendo defender a matemática, tratam-na muito mal. Muitos alunos convivem mal com ela. O eduquês mais radical quer mesmo bani-la da escola (ver aqui). Alguns literatos, que ainda vão no tempo pré-snowiano, ignoram-na pura e simplesmente. Algumas pessoas com posses acham que não a têm de possuir. Vale a pena, por isso, deixar aqui a minha posição sobre o que é e para que serve a matemática que exprimi num debate com Fernando Santos e Álvaro Góis,moderado por Ana Sousa Dias, num congresso sobre enino da matemática promovido pela Sociedade Portuguesa de Matemática na Fundação Gulbenkian há cerca de um ano:

O que é a matemática do ponto de vista de um físico? Com certeza que, do ponto de vista de um engenheiro e de um ponto de vista de um economista, a matemática é um meio que proporciona riqueza. Mas, do ponto de vista de um físico, que também será o de um matemático, trata-se de uma riqueza em si. Precisamos de matemática? Sim, precisamos absoluta e desesperadamente de matemática. E precisamos dela não só aqui e agora, como também qualquer que seja o sítio e qualquer que seja o tempo. A matemática é uma das maiores criações humanas, uma das maiores criações intelectuais da humanidade. Precisamos tanto da matemática como precisamos da música, da filosofia ou de qualquer outra das grandes criações humanas.

Do ponto de vista de um físico, a matemática é totalmente inevitável. Não existe física sem matemática: há uma comunhão de cama, mesa e roupa lavada. Vivem as duas juntas desde que a física existe. O pai fundador da física que é Galileu disse: o livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos e só o consegue ler quem conhecer essa linguagem. Ele foi o primeiro a fazer experiências tão simples como a de deixar cair um objecto e reconhecer nesse fenómeno os “caracteres da matemática”, a começar pela linha recta – os objectos, que são simplesmente largados, caem ao longo uma linha recta. Está logo aqui um padrão geométrico, uma regularidade que tem tanto de simples como de belo. Além da geometria, na descrição da queda dos corpos entre também a álgebra, que já existia antes de Galileu e que ele usou para expressar que a distância percorrida é proporcional ao quadrado do tempo. Como um objecto caía muito depressa ele inventou o plano inclinado de modo que o movimento fosse devagar. Tratava de uma máquina simples para efectuar uma experiência científica em condições controladas. Note.se que Galileu não dispunha de relógio para medir o tempo. A tecnologia do relógio só surgiu depois. Teve de usar o seu próprio pulso! Se ele tivesse ficado alvoroçado com a descoberta da lei da queda dos graves, lá se ia a descoberta, pois não conseguiria verificar a fórmula da queda dos graves... Galileu fez, portanto, nascer a física numa união íntima com a matemática. Não há física sem matemática. As pessoas podem dizer que não gostam de matemática (se a conhecessem melhor, poderia ser que passassem a gostar), mas, nesse caso, não poderão ser físicos ou sequer aprofundar o estudo da física porque a matemática é a maneira de expressar verdades sobre o mundo físico da melhor maneira, da maneira mais simples e elegante.

A seguir a Galileu veio Newton. Conta a lenda que estava debaixo da macieira (não estava lá ninguém para verificar, a história pode ter sido engendrada por ele), e apercebe-se, num momento mágico de intuição, que a maçã e a Lua obedeciam à mesma lei física. Esse momento de descoberta é o que os construtivistas gostariam de ver nas nossas crianças, mas afinal não se vê: esses momentos de intuição são muito raros. Newton vê a maçã e a Lua e conclui: há uma unidade profunda entre eles, a força que faz cair a maçã, a força da gravidade, é a mesma força que faz andar a Lua em volta da Terra. Isto não é, convenhamos, de modo nenhum intuitivo, mas no entanto, Newton teve esta intuição. Depois, a partir das observações de Kepler, conseguiu deduzir, para a força da gravidade, a expressão matemática do inverso do quadrado da distância. É este conhecimento pormenorizado da força que nos permite hoje, por exemplo, enviar e controlar satélites, obtendo informação sobre o que passa no outro lado da Terra. O nosso conhecimento físico-matemático do mundo é um conhecimento operativo, quer dizer, nós vivemos melhor no mundo, somos mais ricos neste mundo, porque dispomos de conhecimento sobre ele. Sem esse conhecimento, como seria a nossa vida? Sem Galileu e Newton, como seria hoje a nossa vida? Repare-se que Galileu e Newton partiram de fenómenos concretos, usaram a matemática, que tem algo de abstracto, e, a partir das suas formulações, foi possível chegar a aplicações concretas. Já alguém disse que a matemática parte do concreto e procede de uma maneira lógica e sistemática. Foi também assim que fizeram os primeiros grandes físicos.

Depois, veio ainda um outro grande físico, Einstein, o físico que subiu aos ombros de Newton, que por sua vez tinha subido para os ombros do Galileu, Einstein também partiu do concreto para o abstracto. Em primeiro lugar, porque é que ele se interessou pela ciência? Quando tinha cinco anos o pai ofereceu-lhe uma bússola e a criança que havia de ser cientista ficou a pensar no mistério da bússola. Mais tarde, aos doze anos, alguém lhe deu o livro “Os Elementos” de Euclides. Portanto, o concreto, nele como em qualquer criança, apareceu primeiro que o abstracto. Einstein faltou a umas aulas de matemática no seu curso da Escola Politécnica de Zurique. No entanto, a matemática que ele precisava para a sua teoria da relatividade já estava toda feita e compilada. Tanto para a relatividade restrita como para a relatividade geral, caso em que é mais complicada, a matemática já estava disponível, ao contrário do que aconteceu com Newton que teve de desenvolver a matemática apropriada para descrever o movimento. Einstein, não tendo frequentado todas as aulas, teve de se socorrer de uns apontamentos de um colega mais assíduo. Foi um professor dele, Minkowski, que sabia obviamente mais matemática do que Einstein, que formulou mais tarde a teoria da relatividade restrita num quadro matemático mais simples e elegante do que o seu antigo discípulo. Em 2005 fez cem anos a teoria da relatividade restrita de Einstein. E, em 2008, fez cem anos que o professor de Einstein expôs a teoria do Einstein de uma maneira matematicamente muito atraente, designadamente, que o tempo, a quarta dimensão, pode ser concebido como uma grandeza que os matemáticos designam de “imaginária”. Se considerarmos um tempo imaginário, a geometria da relatividade restrita para o espaço-tempo a quatro dimensões é a velha geometria euclidiana, contida nos “Elementos”. Portanto, Einstein resistiu um pouco, não percebeu muito bem Minskowski de início, mas, depois, concordou que essa era, de facto, uma maneira bonita de expressar as suas ideias da relatividade. Lá veio, mais uma vez, a matemática em auxílio da física.

Para a relatividade geral, Einstein também conseguiu chegar a uma equação muito bela. De um lado da equação, colocou a geometria do mundo a quatro dimensões, do espaço de tempo, desta vez não euclidiana. E, do outro lado, colocou a matéria e a energia. Portanto, a matéria e a energia determinam a geometria do mundo e esta geometria já antes tinha sido desenvolvida pelos matemáticos.. Einstein veio mostrar, mais uma vez, o grande poder da abstracção matemática para descrever situações concretas, pois a gravidade geral descreve os fenómenos da gravitação. Pensavam os matemáticos do século XIX que tinham criado novas geometrias, as geometrias não-euclidianas, que não tinham aplicação visível. Um dos maiores matemáticos desse século, Gauss, preocupou-se com esses problemas. O que fez ele para testar a geometria não-euclidiana? Pois fez experiências concretas. Ele sabia que a soma dos ângulos de um triângulo era 180 graus, de acordo com a geometria de Euclides. E perguntou? Será que no nosso planeta se aplica a geometria de Euclides? Pôs uma lanterna aqui, outra ali a grande distância e outra ainda acolá, também a grande distância, e tentou medir os ângulos desse triângulo á superfície da Terra. Não encontrou grandes desvios, devido ao grande tamanho do nosso planeta. A equação de Einstein, conforme se veio a mostrar, sumaria o nosso conhecimento do macrocosmos. Descreve o Big Bang, os buracos negros, etc. Mais tarde o sábio procurou debalde, sempre com base na matemática, uma teoria unificada que conseguisse descrever ao mesmo tempo a força da gravidade e a força electromagnética, que inclui a força magnética que preside à agulha da bússola. Einstein é hoje visto, e justamente, como o protótipo do pensamento abstracto, do pensamento matemático que consegue apreender o cosmos, mas não nos esqueçamos que ele começou com a bússola que o pai lhe deu, que ele começou em criança com a manipulação de um objecto concreto.

Por último, a questão que aqui foi posta: precisamos em Portugal da matemática? O facto de se colocar a pergunta dá logo a informação sobre o estado do país. Um país que está bem não coloca essa pergunta. Será que nós somos concretos? Será que nós somos lógicos e sistemáticos? Se a matemática parte do concreto e é uma procura lógica e sistemática de conhecimento, será que nós usamos metodologias desse tipo nas nossas vidas? E a resposta é que, na minha opinião, infelizmente não, não o fazemos na medida suficiente. Bastará dar um exemplo. A noção portuguesa de tempo é a noção menos concreta possível. Quando uma pessoa diz, “amanhã encontramo-nos”, este amanhã não quer dizer rigorosamente nada. Com um americano, se eu disser amanhã encontramo-nos, tenho de acrescentar o local e a hora, o espaço e o tempo. Planeio um evento num dado ponto do espaço e num dado instante de tempo. . Aqui não, amanhã encontrar-nos-emos, se calhar, por aí... Há uma esperança vaga de eu amanhã me cruzar com uma dada pessoa. Por sua vez, a procura lógica e sistemática devia ser também uma constante nas nossas vidas e não é. Será que nós planeamos as coisas? Acho que somos mais conhecidos pelo improviso, um improviso que, em geral, tem más consequências. Se há uma festa que temos de organizar, nós dizemos, “logo se vê”, uma expressão muito portuguesa. E vamos dizendo isto até à véspera... Depois, na véspera, começa a chover e dizemos: “ainda bem que não preparámos nada, está a chover”. Noutro país mais desenvolvido, como por exemplo na Alemanha, ter-se-ia o plano A e o plano B. O plano A com chuva e o plano B sem chuva, contemplando todas as hipóteses. Esta é a maneira racional, lógica e sistemática, de operar o mundo.

A matemática não são apenas as linhas geométricas, não são apenas os números, é o raciocínio rigoroso, é o método de pensar com o qual se pode ver e operar o mundo. Dou um outro exemplo. Ontem planeei aqui estar às dez horas e pensei assim: para estar às dez horas em Lisboa, tenho de partir às oito horas em Coimbra, duas horas chega para a viagem não ultrapassando, no meu carro os limites de velocidade. O raciocínio está bem feito: fiz as contas pensando numa velocidade média. Mas cheguei tarde. Porquê? Porque houve um grande desastre às portas de Lisboa que fez parar o trânsito. As coisas decorreram de uma maneira não planeada, mas que eu devia ter planeado. Devia ter plano B. Eu devia ter previsto que, em Portugal, as coisas decorrem de maneira imprevísivel. Infelizmente, os acidentes acontecem aqui mais do que noutros países e acontecem porque as pessoas vão alegremente a 180 km/h sem pensar nas consequências. Já alguém disse, em tom humorístico, que os automobilistas portugueses tentam subir para cima das árvores e alguns conseguem mesmo… Portanto, nós temos, a vários níveis da nossa vida corrente, raciocínios mal feitos, raciocínios que o não são de facto, porque o raciocínio que não é lógico nem sistemático não merece ser chamado raciocínio.

Termino dizendo que vivemos, de facto, numa altura dificil nas nossas escolas, numa altura em que se pensa que um professor pode ser substituído por um computador Magalhães. Mas este debate aqui deu-nos algum conforto, com base nas experiências dos outros países, de países onde não se põe a pergunta sobre a necessidade da matemática. Havemos de ser como eles. Mas, para isso, temos de interiorizar o valor do raciocínio. Essa é a grande riqueza da matemática: pensar bem. A matemática é uma lição permanente para a nossa vida.

1 comentário:

João Vasco disse...

Acrescentaria que antes de Galileu, Arquimedes já tinha descoberto algo sobre a impulsão, sobre roldanas e alavancas, e outras leis da física.

Isso acaba por confirmar a relação com a matemática, visto que Arquimedes foi um grande matemático que, entre outras coisas, introduziu a noção de infenitezimal que até usou para obter a melhor estimativa de PI até então alcançada.

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