segunda-feira, 26 de abril de 2010
Viagens científicas a estabelecimentos de ensino europeus no século XIX
Post convidado de António José Leonardo, historiador de ciência sobre o intercâmbio científico internacional da Universidade de Coimbra (UC) no século XIX:
Desde o início do século XIX que se foi sentindo a necessidade de efectuar reformas no ensino das ciências tomando como exemplo as instituições europeias similares. Estas tinham também o objectivo de conhecer as novidades científicas e permitir o contacto com professores eminentes e com os instrumentalistas, permitindo formar os congéneres portugueses nas novas técnicas e métodos e facilitar a aquisição de novos aparelhos, instrumentos e colecções científicas, em favor do apetrechamento dos estabelecimentos de ensino portugueses.
No âmbito do ensino das ciências físico-matemáticas, destacaram-se no princípio do século XIX as viagens de José Bonifácio de Andrada e Silva (entre 1790 e 1800), de João António Monteiro (Carta Régia de 9 de Julho de 1804, não tendo regressado a Portugal), Paulino de Nola de Oliveira e Sousa (com início em 1804), Sebastião Navarro de Andrade (em 1805) e Manuel Pedro Homem de Mello (entre 1801 e 1815). Andrada e Silva, ao longo de dez anos, esteve na Itália, Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Hungria, Noruega, Dinamarca, Inglaterra e Escócia, tendo contactado com os mais importantes cientistas da época, como Lavoisier, Humboldt, Volta, etc. António Monteiro distinguiu-se na mineralogia, trabalhando na Alemanha, onde frequentou as lições de Werner em Freiberg, na Áustria, em Inglaterra e em França, onde publicou muitas memórias tendo-se estabelecido em Paris. Paulino de Nola foi pensionado em Paris, Freiberg e Londres. Manuel de Mello, docente da Faculdade de Matemática, passou por muitos estabelecimentos científicos de vários países europeus, como França, Bélgica, Itália e Inglaterra, tendo, inclusivamente, estabelecido contactos com fornecedores de instrumentos, enviando alguns para a UC para serem utilizados nas aulas de Física Experimental e Hidráulica.
O período de instabilidade em Portugal, durante e após as invasões francesas, impediu a realização de missões científicas ao exterior, no entanto notou-se um ressurgimento destas iniciativas já na década de 1850, no período da “regeneração”. Estes investigadores reportavam os resultados das suas missões através de relatórios, alguns dos quais foram publicados n’O Instituto.
Um primeiro exemplo foi a viagem científica de Matias de Carvalho Vasconcelos, iniciada em 1857. Os objectivos eram diversos, desde o estudo dos novos métodos de Química prática, em particular os processos metalúrgicos, até aos desenvolvimentos da Física, designadamente no estudo do magnetismo terrestre e da meteorologia, e ao conhecimento dos modernos aparelhos de medida em uso nos observatórios europeus. Apesar de ter estado na Inglaterra, Bélgica e Alemanha, Matias de Carvalho centrou-se em Paris, onde esteve durante mais tempo. Enviou três relatórios das suas viagens. O primeiro abordou o magnetismo e a meteorologia, de acordo com as visitas ao Observatório de Greenwich, perto de Londres, e ao Observatório Real de Bruxelas, onde participou activamente e em conjunto com Quetelet nos trabalhos de observação do eclipse de solar de 15 de Março de 1858. O segundo relatório incidiu na análise química de ligas metálicas estudada no laboratório da Casa da Moeda em Paris. Neste relatório, Matias de Carvalho alertou o Conselho da Faculdade de Filosofia para a necessidade de adoptar como novo manual para a cadeira de Química Orgânica o livro de Cahours dado este ter grande e merecida aceitação, correspondendo a um grau superior de instrução pública. No último relatório, de 16 de Dezembro de 1858, Matias de Carvalho abordou os novos processos metalúrgicos e a mineralogia. Apesar da só ter regressado a Portugal em 1865, para ocupar o lugar de provedor da Casa da Moeda em Lisboa, não voltou a enviar relatórios. Continuou em representação oficial da UC e mediou a aquisição de vários instrumentos e exemplares de História Natural. Foi o único representante português no Congresso Internacional da Química que ocorreu em Karlsruhe, na Alemanha, em 1860, o primeiro congresso científico internacional que foi preponderante no desenvolvimento da Química.
Também Francisco de Sousa Holstein, doutorado em Direito, realizou uma viagem pela Europa em 1859, visitando algumas universidades estrangeiras de onde enviou para a UC os seus regulamentos e estatutos, estabelecendo relações científicas e ajudando a trocas bibliográficas com a Universidade de Madrid. Um ano depois, Jacinto António de Sousa, da Faculdade de Filosofia, e Rodrigo Sousa Pinto, da Faculdade de Matemática, deslocaram-se a Espanha, integrados numa comissão portuguesa para participar nas observações de eclipse solar de 18 de Julho de 1860. Finalizados os trabalhos, ambos os investigadores da UC partiram em viagem científica pela Europa, tendo Sousa Pinto como destino os observatórios astronómicos, e Jacinto de Sousa os observatórios meteorológicos e magnéticos, e Sousa Pinto os observatórios astronómicos de Madrid e de S. Fernando, em Espanha, de Paris, de Bruxelas e de Greenwich. Jacinto de Sousa visitou os estabelecimentos científicos de Madrid, Paris Bruxelas e Londres (Greenwich e Kew), lamentando-se por alguns deles se encontrarem fechados ou com os seu professores ausentes, devido a férias. Em Setembro regressou ao Observatório de Kew com o intuito de estudar o funcionamento e adquirir instrumentos para o futuro Observatório Meteorológico e Magnético da UC. Estes professores tinham a seu cargo, na altura, as cadeiras de Astronomia e de Física, respectivamente, o que subentende um impacto sensível das suas viagens no ensino destas disciplinas.
Os professores da Faculdade de Medicina António Augusto da Costa Simões e Ignácio Rodrigues da Costa Duarte viajaram até Paris, em 1865, para estudar os processos práticos de histologia e fisiologia experimental, tendo também visitado alguns estabelecimentos na Alemanha. Esta viagem foi decisiva para a criação de um gabinete de Fisiologia Experimental em Coimbra, para o qual foram adquiridos alguns dos mais modernos instrumentos.
Em 1866, foi a vez de António Santos Viegas obter apoio para uma viagem científica aos principais estabelecimentos científicos europeus no sentido de investigar a organização do ensino da Física e da Química, com especial ênfase na vertente da Física Experimental. No primeiro relatório, referente ao período de Dezembro de 1866 a Maio de 1867, Santos Viegas descreveu a visita à Universidade de Madrid, inferindo da disposição física dos anfiteatros que “o ensino se dá ainda pelo systema antigo, consistindo unicamente em prelecções oraes, com o auxílio do quadro para cálculos e construções graphicas, e acompanhadas, quando muito, da demonstração de um ou outro aparelho”. Em Espanha também visitou algumas escolas secundárias, designadas de Institutos, relatando com pormenor a forma como estava estruturado este nível de ensino no país vizinho. Destacou a proximidade orgânica dos Institutos com uma universidade central, referindo a carreira do professorado: um professor poderia ascender gradualmente desde um instituto de 3.ª classe até uma universidade central, de acordo com provas dadas. Nas universidades, os concursos eram abertos, especialmente, para cada cadeira, sendo o professor escolhido com base nas suas habilitações nessa área específica. Existiam então dez universidades centrais em Espanha. De Madrid partiu para Paris, onde conheceu os estabelecimentos de ensino superior, como a École Politechnique e o Collège de France, e frequentou cursos públicos de Física da Universidade de Paris/Sorbonne. Estes eram cursos semestrais para alunos dos 1.º e 2.º anos das escolas normais e para auditores voluntários. Suponham o conhecimento dos princípios gerais da física, adquiridos nos liceus, e neles já se fazia uso de projecção das lições por meio de luz eléctrica, uma inovação que Santos Viegas já tinha tentado em Coimbra. Aproveitou para fazer algumas encomendas de instrumentos de acústica a Koenig.
O segundo relatório de Santos Viegas referiu-se ao período de Junho a Novembro de 1867, quando esteve na Inglaterra e Escócia. Visitou a Universidade de Londres, na qual apenas eram examinadas as aptidões dos indivíduos que aspiravam aos graus académicos, provenientes de outras universidades ou colégios, as Universidades de Oxford e Cambridge e outras instituições científicas, como a Royal Society, a Sociedade de Química e a Royal Institution. Já na Escócia visitou as Universidades de Glasgow e Edimburgo.
Viegas descreveu com algum pormenor os estabelecimentos anexos dedicados à investigação, como os observatórios, os gabinetes de física, os laboratórios de química e os jardins botânicos e museus naturais, com particular incidência nos seus instrumentos e colecções, tendo também adquirido alguns instrumentos de química. Em 1870, numa data que coincidiu com a entrada das tropas italianas em Roma, Santos Viegas efectuou uma segunda viagem científica, desta vez a Itália, para estudar espectroscopia com Secchi, para preparar a observação do eclipse solar desse mesmo ano que seria visível no Algarve.
Embora não se tratasse de uma viagem científica propriamente dita, foi, em 1874, publicado n’O Instituto um “bosquejo histórico” relativos às faculdades de filosofia das universidades alemãs, da autoria de Bernhard Tollens. Este químico alemão e sócio do Instituto de Coimbra foi contratado como director dos trabalhos práticos de laboratório da UC, tendo permanecido em Coimbra no curto período de Abril de 1869 a Janeiro de 1870. Na sua memória, Tollens descreveu a evolução histórica das universidades na Alemanha, estabelecendo o conteúdo lectivo de uma Faculdade de Filosofia como “tudo o que não entra no quadro das Faculdades de Theologia, Direito e Medicina” . Apesar de referir alguns estabelecimentos onde a Matemática tinha sido separada da Filosofia, como Portugal, dizia que na Alemanha se tinha conservado o conceito mais alargado de Filosofia, partindo do ponto humano para o domínio das ciências naturais e incluindo as Letras (com a excepção da Universidade de Tuebingen). Os estudantes alemães tinham total liberdade na escolha das cadeiras que desejavam frequentar, sendo estas pagas separadamente, podendo eles seguir o percurso que desejassem. Tollens apresentou um quadro descrevendo a forma como se distribuíam, na generalidade, as disciplinas leccionadas nas Faculdades de Filosofia, divididas pelas áreas principais de Ciências Filosóficas ou Letras (que incluíam a Filosofia, Matemáticas, Linguísticas e Literaturas, História e Ciências auxiliares, História das Artes e Ciências Cameralísticas) e as Ciências Naturais ou simplesmente Ciências (que incluíam a Zoologia, Botânica, Mineralogia, Astronomia, Física, Meteorologia, Química, Farmácia, Agricultura), perfazendo um total de 68 cadeiras. De seguida, descreveu os estabelecimentos especiais das Faculdades de Filosofia, como: observatório astronómico, jardins zoológicos e botânicos, museu de história natural, gabinetes de física e observatório meteorológico, laboratórios de química, dispensário farmacêutico, academias agrícolas e biblioteca.
António José Leonardo
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"
Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à in...
Sem comentários:
Enviar um comentário