sábado, 10 de abril de 2010

Todas as crianças são poetas… menos...

Chegou-me à caixa de correio um artigo assinado por uma Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que, tendo o estatuto de investigadora, não é propriamente uma leiga em matéria de educação. Encontrando-se num processo de especialização, a sua opinião conta, e a sua opinião a respeito do estudo e da aprendizagem é a seguinte:
"Estudar tem de ter a adesão voluntária das crianças. Deve ser algo que elas percebam e por que se interessem. Perceber que conhecer, aprender e ter a possibilidade de participar no mundo de uma forma informada é algo estimulante, e as crianças gostam deste sentimento. Estudar é perceber mais e melhor... não é repetir o que os adultos impõem (...) As crianças têm múltiplos interesses que são desprezados em função da matéria escolar (...). Desenvolver e treinar a memória é o que as crianças mais fazem no seu dia-a-dia (...) Elas fazem-no à medida que se vão confrontando com a necessidade de saber, ou seja, quando jogam ou quando vêem jogar. Fazem-no sem custo porque é uma actividade que lhes interessa e, portanto, aderem a ela. E, ao aderir, estão a memorizar e a treinar (...) precisamos de compreender que também as propostas de trabalho que exigem estudo e esforço têm de ser sentidas pelas crianças como verdadeiramente importantes e suficientemente interessantes para que a elas adiram com vontade e para que as valorizem, para que as trabalhem com gosto. Caso contrário, mal comecem a ter alguma autonomia, deixam o estudo aprofundado de lado e fazem somente o mínimo necessário para passar de ano (...). Quando se obriga a memorizar e repetir, estamos a impor uma concepção já programada e raramente as crianças aprendem a pensar, a pôr em causa, e isso não as ajuda a perceber e ficar com vontade de continuar."
Encontro no livro O valor de educar, do filósofo Fernando Savater, uma passagem que desmistifica esta ideia absurda de que a criança aprende autonomamente a partir dos seus interesses, da sua natural criatividade, sendo que qualquer direccionamento ou constrangimento por parte dos adultos pode perturbar esse delicado fluir.
“Uma certa mitologia pedagógica criou a fábula da criança criativa a quem os constrangimentos da pedagogia mutilam e acorrentam. De acordo com esta argumentação falsamente rousseauniana — que não a de Rousseau — deve deixar-se que a criança desenvolva a sua genialidade inata, seguindo discretamente a corrente, sem outra medida educativa… mais ou menos como se estivesse louca. O contrário — dizem — supõe sacrificar a sua criatividade às rotinas opressivas e medíocres da sociedade em que vivemos. Para Claude Lévi-Strauss (…) a criatividade infantil revela-se antes de tudo na sua capacidade para assimilar a educação e essa sim que é inata; não esqueçamos que o mestre, por melhor que seja, só consegue ensinar, mas é criança quem realiza sempre o acto genial de aprender. Com frequência esse talento humanizador, gradual e evolutivo, está em luta com os frutos de precocidade, artificialmente maduros, que tanto agradam àqueles que gostam de exibir as destrezas das crianças como se fossem fenónemos de circo. Por isso, quando há algumas décadas atrás surgiu em França uma menina chamada Minou Drouet, celebrada como um prodígio porque escrevia poemas, Jean Cocteau comentou: «Todas as crianças são poetas… menos Minou Drouet…» (...)
Será então melhor que as crianças, por mais criativas que as consideremos, recebam a preparação adequada (...). E se alguma «criatividade» se perde no processso, é certo que se obterão como compensação resultados socialmente mais aceitáveis e uma configuração pessoal menos caprichosa e portanto mais estimulante. Será necessário recordar que não é possível nenhum processo educativo sem alguma disciplina? (…). A própria etimologia da palavra na língua latina (composto por discis, ensinar e da palavra que nomeia as crianças, pueripuella) vincula directamente a disciplina ao ensino. Esta exigência obriga o neófito a manter-se atento ao saber que lhe é proposto e a cumprir os exercícios que a aprendizagem requerer. O termo serviu também para denominar as diversas destrezas e conhecimentos que se aprendem por este processo, as matemáticas ou a geografia são disciplinas cuja aprendizagem exige, por sua vez, disciplina.”

4 comentários:

Musicologo disse...

É um balanço. É preciso um pouco de ambos os mundos. No meu ensino ideal (que peca porque sofre dos meus preconceitos e das experiências que entendi que resultaram comigo), haveria sempre uma componente mecanicista, disciplinadora, de memória, de apreensão de conteúdos novos que realmente têm de ser incutidos, quase que enciclopedicamente, ou por recitação. Poder-se-á arguir melhores formas de introduzir estes conteúdos no cérebro do infante, sem que ele se alheie ou encare como seca.

Depois haveria sempre uma componente criativa, prática em que se articulariam os saberes adquiridos na primeira metade enciclopédica, mecanicista. Para criar, para exercitar, para expandir é necessário ter substância e método para produzir a consistência.

Assim, não me parece o ensino actual de todo desarticulado. De um lado, Português,Inglês e Matemática fundamentais para trabalhar os símbolos, a lógica e o conteúdo. Mais tarde juntar-se-ia a Filosofia, tão maltratada mas absolutamente fundamental.

Pelo meio a História, Geografia, Ciências Naturais e Físico-Químicas. O Grosso de conteúdo e criatividade zero. Basicamente conteúdos de cultura geral, informação. Muita informação.

Finalmente, no outro pólo e com a mesma carga horária que todos os acima mencionados, estariam as Artes (Música, teatro, dança, desenho e pintura, oficinas), o Corpo e o desporto (Educação física) e as tecnologias de informação (Informática, Comunicação).

Esta estrutura não difere assim tanto com a já ministrada. Talvez ao nível das cargas horárias.

Mas sobretudo, e este é sim o ponto mais importante: as condições de trabalho.

Máximo de 15 alunos por turma.
Salas equipadas com recursos multimedia.
Ateliers oficinais, piano, ginásios.

É sobretudo ao nível da organização escolar que sinto os maiores problemas a acontecer, e que levam a muitas situações caóticas em que metade do tempo não se está a ensinar/trabalhar, mas sim a educar ou repreender.

Raros problemas, e muita satisfação tive com o 3º ciclo, grupos de 8, 10, 12 alunos, em salas equipadas com recursos musicais e multimedia.

Passei pesadelos em salas confinadas, a mesas e cadeiras e com 25 miúdos do 2º ciclo, lá enfiados. Nos dias de ponte, quando metade faltava, esses mesmos miúdos, reduzidos a 12 trabalhavam como os outros do 3º ciclo onde tinha satisfação.

O meu empirismo dá-me que o número de alunos e as suas bases curriculares linguísticas e de articulação de pensamento eram determinantes para o seu sucesso mais que outra coisa.

Anónimo disse...

Talvez o contrário seja mais verídico: todos os poetas são crianças... menos aqueles que jamais o foram. JCN

José Meireles Graça disse...

Na minha ingenuidade, estava convencido que os bolseiros da Fundação não bolsavam.

Fartinho da Silva disse...

Gostava MUITO de saber onde a bolseira tem os seus rebentos a estudar!

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