domingo, 11 de outubro de 2009

Rotas da transumância

Texto de João Boavida, antes publicado no diário As Beiras, que recorda uma prática ancestral de diferentes povos: a longa condução de rebanhos em determinadas épocas do ano.

A palavra é magnífica: tran-su-mân-cia. Dá ideia de errância, longas caminhadas, cansaços e descansos; e ciclos de ida e regresso, de calor e frio, de subida e descida; e sempre de ovelhas, cães de guarda, pastores, chocalhos, gritos, assobios e ralhos, ladridos e balidos; e de ordenha e leite e coalho e cardo e cincho e queijo e cura.

A transumância diz respeito, como se sabe, aos movimentos de pastorícia que sobem do vale à montanha, quando chega a Primavera, e descem dos montes para os vales, quando o frio torna por demais a vida dura aos pastores e os pastos escasseiam pela queima da geada e do cincelo.

Pensemos no peso que tudo isto tem na cultura portuguesa. Que ainda tem, da economia à literatura. Dos queijos «amarelo» ou «queimoso», da Beira Baixa, ao «guardador de rebanhos", de Alberto Caeiro, por exemplo:

Olá guardador de rebanhos,
aí à beira da estrada,
que te diz o vento que passa?
que é vento, e que passa
e que já passou antes
e que passará depois.


Pensemos em Jano, das Éclogas de Bernardim, que guardava «cuidados».

Dizem que havia um pastor
antre Tejo e Odiana
que era perdido de amor
por uma moça Joana
Joana patas guardava pela Ribeira do Tejo
seu pae acerca morava
e o pastor de Alentejo
era e Jano se chamava


E em toda a poesia pastoril e n’ «o pastor de Bensafrim», de José Afonso, canção tão bela e tão esquecida e sei lá em que mais.

Mas pensemos também na cultura de toda a bacia mediterrânica, com memórias que vão até aos primórdios bíblicos e atravessam todo o Velho e todo o Novo Testamento. O Bom Pastor, que nos dirige e defende, o cordeiro pascal que por nós se sacrifica, ou que nós sacrificamos; mas também a parte negra, em que o lobo se faz de ovelha. Ou a perfídia de Rebeca envolvendo os braços do filho amado, Jacob, com peles de ovelha, e assim ganhando, para este, as bênçãos do velho e já cansado Isaac, levando-o a deserdar Esaú. E a própria ideia de «lobo mau», de toda a literatura tradicional infantil, tão injusta para a espécie “só” talvez porque, tradicionalmente, o lobo era o grande predador de ovelhas, base de toda economia transumante, etc, etc.

É neste vasto e antiquíssimo enquadramento religioso e profano, e também económico e artístico que tem sentido a «Festa dos Chocalhos» ou simplesmente «Chocalhos» e as rotas da transumância. Festa com que Alpedrinha se anima, já há vários anos, nos finais de Setembro, quando os rebanhos regressam (ou regressavam) à protecção e ao calor dos povoados. É, ou tem a pretensão de ser, um projecto cultural, feito de memórias de práticas, de revalorizações, e numa perspectiva de interacção cultural, regional e transfronteiriça. É um programa variado, desde as práticas relacionadas com a pastorícia a caminhadas pela serra e a rebanhos descendo a encosta. E, claro, venda de produtos, exposição de artesanato, concertos de musica erudita, folclórica e outra, conferências temáticas e muita animação de rua com bombos de pele de cabra, zabumbas de revira o malho, gaiteiros, cabeçudos, chocalheiros, acordeonistas, uns aqui outros ali, uns para cima outros para baixo, rivalizando, sobrepondo-se às vezes numa animação que só visto e, claro, comes e bebes da região com fartura por todo o lado. E tudo isto ao longo da «rua corrente», traçada sobre a antiga estrada romana, roteiro milenar de caminhantes, pastores, lavradores, gente de constante ir e vir nas suas vidas.

Talvez a festa possa ainda melhorar com um pouco mais de exigência etnográfica, com mais promoção de produtos regionais (por que não um concurso desses excelentes queijos da Beira Baixa, que tantos ainda desconhecem?), mas a festa é já notável pela participação popular, o folclore, a preciosa gastronomia, o convívio e a alegria geral. E tudo isto naquela paisagem belíssima e naquele enquadramento ímpar de uma vila fidalga a cuja beleza só são insensíveis os que nunca lá foram.

É reconfortante, por outro lado, ver como, de uma forma quase espontânea, as culturas se procuram defender contra os agressores estranhos, muitíssimo fortes com que os «media» a toda a hora nos inundam. A adesão das pessoas a estas manifestações parece demonstrar a fome de cultura que, cada um a seu modo, hoje sente. Talvez por temer perdê-la, talvez por saudade antecipada, quem sabe?
João Boavida

4 comentários:

platero disse...

Prof. David Morais - da Universidade de Évora -
tem bibliografia interessante sobre o tema, em relação ao Alentejo

Anónimo disse...

A Serra do Montemuro era um dos destinos principais da transumância das beiras Alta e Baixa. Em alguns casos não era uma deslocação vale-montanha, mas apenas a deslocação para espaços montanhosos com mais recursos. Os gados chegavam da Estrela por volta do São João e arrendavam os pastos maninhos dos termos das povoações serranas do Montemuro até ao São Bartolomeu (24 de Agosto). No século XVI há registo de transumância entre o Montemuro e as gândaras de Coimbra ou Aveiro.

Helena Ribeiro disse...

Excelente texto!

Anónimo disse...

Boa tarde. este artigo sobre as rotas de transumancia é muito interessante.
Estou a fazer um trabalho sobre este tema e gostaria de saber se me dão autorização para seguir algumas ideias do texto e citar o autor. como se chama o autor?
se me dão licença agradeço imenso. o meu e-mail é silvia-silva2@hotmail.com

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