segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O que se esquece do se lê e se escreve

É estranho pegarmos num livro que já lemos e parecer-nos um livro novo, que nos apanha de surpresa e nos desvenda frases que, quase juramos, estamos a apreciar pela primeira vez. Porém os sublinhados e as anotações, numa caligrafia que reconhecemos ser nossa, garantem-nos que passámos por elas antes.

Nesse momento, não podemos deixar de perguntar: para onde foram, em que dimensão de nós se esconderam? Apesar de não conseguirmos descobrir quando ou onde nos detivemos nelas, como influenciaram a nossa vida, pressupomos estarem arrecadadas na nossa memória, terem-se, até, tornado um pouco naquilo que somos.

O conhecimento do que já foi conhecido, o distanciamento do que já foi próximo é ainda mais surpreendente quando passamos da leitura para a escrita que saiu da nossa mão. Vêm estas considerações, a propósito do casual (re)encontro com o Livro do Desassossego. Fernando Pessoa, na fala de Bernardo Soares, disserta da seguinte maneira sobre o fenómeno:

“Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? (…) encontro trechos que não me lembro de ter escrito – o que é pouco para pasmar –, mas que nem me lembro de poder ter escrito – o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas – mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.”

4 comentários:

Anónimo disse...

Um artigo bastante interessante e pedagógico para a sociedade em geral.

Nunca me hei-de esquecer aquelas frases das minhas professoras de, Português e Filosofia, quando me diziam; "saber ler é ler outra vez".Conselho que segui,lendo neste momento o mesmo livro, pelo menos,duas vezes o que gozo me dá porque acabo de ter outra percepção do antes
lido.

É neste sentido que leio este artigo o qual pena me deixa não chegar à soiciedade,qui ça se não mudariam os hábitos de leitura.
Obrigados pela dica
António Santos

joão boaventura disse...

Encontro uma possível explicação nestes versos de poeta cujo nome não me ocorre no momento:

... ... ... ...
É de passos a dar que faço a viagem
E não de passos dados na paisagem
Já gasta de tanto a ver e ter de cor
... ... ... ...

joão boaventura disse...

Vergílio Ferreira disse:

A Consciência Débil da Nossa Autenticidade
A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registo disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira.
Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.

Vergílio Ferreira,
in 'Invocação ao Meu Corpo'

Unknown disse...

"... pressupomos estarem arrecadadas na nossa memória, terem-se, até, tornado um pouco naquilo que somos."

Aquilo que lemos, mesmo sem termos consciência disso, acumula-se na memória das nossas células pelos anos fora e "faz-nos", sem dúvida nenhuma.

Mas concordo com a estranheza que causa lermos pela segunda vez como se o estivéssemos a fezer pela primeira vez. Também coloco a hipótese de tal se dever não só a nós próprios, como à riqueza da própria obra.

Mas verdadeiramente estranho é não reconhecermos aquilo que escrevemos em tempos idos, como se de outra pessoa se tratasse. Esse fenómeno, que não entendo mesmo, chega a ser desconfortável.

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