Minha recensão no I de hoje:
Quando, em 2014. me foi dado dizer, no Centro Cultural de
Belém, umas palavras de apresentação do livro A Sala de Aula, de Maria
Filomena Mónica (MFM), publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos,
comecei por referir a numerosa bibliografia da autora. Para o provar, enchi uma
mochila com livros da sua autoria, que retirei da minha estante (não os levei
todos porque não cabiam!), e fui-os acumulando na mesa à minha frente. Julgo
que o momento foi gravado em vídeo, com a autora a ficar cada vez mais escondida
pela montanha de livros!
No último livro de MFM, O
Meu País. Notas sobre o Nacionalismo, saído em Novembro na Relógio d’Água,
diz a badana que ela é autora de mais de duas dezenas de livros. Sendo verdade,
não diz a verdade toda. Pelas minhas contas são mais de cinco dezenas, tendo eu
pena de não ter a colecção completa. Ainda não consegui encontrar o primeiro, Educação e
Sociedade no Portugal de Salazar (Presença,
1978), que é a tese em Sociologia que defendeu na Universidade de Oxford
em 1978. MFM, licenciada em Filosofia na Universidade de Lisboa em 1969, é hoje
investigadora emérita do Instituto de Ciências Sociais desta universidade.
A escola é uma das
preocupações de MFM, um interesse que terá a ver com a sua formação académica
em sociologia da educação. Sobre ela escreveu Vale a Pena Mandar os
Filhos para a Escola? (Relógio d'Água,
2008) e Os Filhos de Rousseau (Relógio
d'Água, 1997),
onde contestou a teoria do construtivismo social que ganhou força entre nós,
que é aparentada às ideias pós-modernistas. Na apresentação do livro enfatizei
a originalidade da ideia de MFM, que consistia em dar voz directamente aos
professores. Ela pediu a alguns deles que escrevessem diários da sala de aula
garantindo-lhes o anonimato (era uma espécie de câmara oculta na sala de aula).
A conclusão era que existia um clima de indisciplina, fruto da falta de
autoridade dos professores, a qual, pelo menos em parte, tem a ver com a
“centralidade no aluno” que aquelas doutrinas apregoam. O professor não tem por
missão ensinar, mas apenas deve ser um “facilitador da aprendizagem” (sic).
MFM é uma das mais
lúcidas observadoras da realidade portuguesa que ela conhece bem não só pela
sua experiência de vida (nasceu em 1943 em Lisboa, com raízes em Ferreira do
Zêzere), mas também por ter estudado a fundo a sua história mais recente. É
autora de vários livros sobre os séculos XIX e XX portugueses: saliento as
biografias de D. Pedro V (Temas
e Debates, 2007), de
Fontes Pereira de
Melo (Afrontamento, 1999; reedição Alêtheia, 2009) e da família açoriana
dos Cantos (Alêtheia, 2010,
reedição 2018).
Conhece a literatura desses séculos: a sua predilecção incide sobre Eça de
Queiroz, de quem escreveu uma biografia (Quetzal, 2001; reedição, 2009) e cujas Farpas (Principia, 2004; reedição, 2013), escritas a meias com
Ramalho Ortigão, editou. Como socióloga interessa-lhe a questão das
desigualdades na sociedade portuguesa: escreveu sobre os dois extremos da
escala social: duas das suas últimas obras são Os Pobres (A Esfera dos Livros, 2016) e Os Ricos (A Esfera dos Livros,
2018).
Porém, uma boa porção
dos seus escritos são de pendor opinativo
e autobiográfico, que têm
proporcionado sucessivas recolhas de crónicas saídas em jornais nacionais. A última é: Nunca Dancei num
Coreto, Crónicas do Expresso (Relógio d'Água, 2018). Publicou as memórias aos 52 anos: Bilhete de Identidade, Memórias 1943-1976 (Alêtheia,
2005; reedição 2017)
causou polémica pelo desassombro pouco habitual entre nós. Como MFM já viveu
muito mais, talvez pudesse pensar na continuação dessas memórias.
Vou focar-me no último
livro de MFM. O título O Meu País
tinha sido também o título do primeiro capítulo de A Minha Europa (A Esfera dos Livros, 2015), obra em que ela abria
e fechava no mesmo tom autobiográfico. Começava assim: “Quando nasci, a Europa
estava em guerra, mas o meu país não. Quando atingi a idade da razão, a Europa
desenvolvia-se, mas nós não”. Agora
começa: “A minha terra é Lisboa. Não considero que seja a melhor cidade do
país, nem muito menos do mundo. Mas foi aqui que vivi e foi aqui que cresci.
Gosto dos bairros onde vivi e de quem neles habitou”.
A obra, tal como o
título indica, é um olhar sobre Portugal que parte de dentro, em contraponto
com o olhar externo que está materializado no recente livro O
Olhar do Outro (Relógio d’Água, 2020), onde MFM compila
depoimentos sobre estrangeiros que visitaram o nosso país. No novo livro,
embora o olhar da autora seja, como é seu costume, central (o título do livro
não engana!), o recurso a depoimentos de estrangeiros é abundante. De facto,
concordo com ela, só poderemos conhecer quem somos se acrescentarmos ao nosso
olhar os dos outros, pois o nosso olhar está fortemente enviesado pela nossa
cultura. Desculpamos coisas que os outros não desculpam.
Como leit motiv de toda a obra está a questão
do nacionalismo e do patriotismo. MFM diz no final que descobriu a diferença,
achando o nacionalismo uma coisa má e o patriotismo uma coisa: «Foi ao
escrever este livro que compreendi serem o nacionalismo e o patriotismo coisas
diferentes: o primeiro é inseparável do desejo de poder, enquanto o segundo é
meramente defensivo. O facto de a minha pátria ser Portugal não me leva a
pensar que seja a melhor do mundo: reconheço tão-só que foi aqui que nasci, foi
aqui que cresci, foi aqui que tive filhos e netos. E agora, que me foge a curta
vida, gosto mais dela porque finalmente me deu a oportunidade de pensar, falar
e escrever livremente.”
A sua síntese histórica
sobre Portugal e a portugalidade começa em 1848, quando ocorreram na Europa as
revoluções nacionalistas que ficaram conhecidas por “Primavera dos Povos”. A
autora não se perde a discutir teorias histórico-filosóficas sobre o
nacionalismo (algumas muito interessantes, vejam-se O Mito das Nações, de Patrick Geary, 2008, e Nações e Nacionalismos, de Ernest Gellner, 1993, ambos publicados
pela Gradiva), mas faz, nos sete capítulos que medeiam entre a introdução e a
conclusão, uma sinopse da história pátria desde 1848 até 1985, quando Mário
Soares assinou no mosteiro dos Jerónimos a entrada do país na CEE. Em 1848 já
tinha terminado entre nós a revolta de Maria da Fonte contra Costa Cabral, mas
ainda não tinha entrado triunfalmente em Lisboa o Duque de Saldanha, iniciando
a Regeneração, período no qual Fontes Pereira de Melo pontificou nas obras
públicas.
No capítulo 1, MFM
discorre sobre a identidade nacional, citando, entre outros, autores como
Eduardo Lourenço, José Gil e Onésimo Teotónio Almeida. No capítulo 2, descreve a
preferência de alguns intelectuais lusos sobre uma aliança estrangeira, com a
Espanha, com a qual existe proximidade geográfica, ou com a Inglaterra, com
quem celebrámos o tratado de Windsor, um dos mais antigos tratados políticos do
mundo. Antero de Quental, que achava a decadência um problema comum da Ibéria,
foi um dos autores que defendeu a União Ibérica. MFM prefere claramente Eça de
Queiroz, mais dado aos ares para lá dos Pirinéus. Diverti-me imenso a reler uns
excertos de Eça judiciosamente escolhidos pela autora.
A nossa explosão
nacionalista é descrita no capítulo 3. Em 1890 ergueu-se um clamor nacional
contra a Inglaterra, a velha aliada que tinha humilhado Portugal ao exigir a retirada dos
ocupantes portugueses de terras entre Angola e Moçambique marcadas no “mapa cor-de-rosa”. A nação cedeu, apesar dos gritos de
indignação. A voz mais clarividente foi então, mais uma vez, a de Eça, que
tinha sido cônsul em Bristol. Lembro que o hino nacional surgiu nessa altura de
brado contra os “bretões”; que, em Angola, o explorador Silva Porto se imolou
embrulhado na bandeira nacional; e que foi feita uma subscrição nacional para
adquirir uma embarcação de guerra, que reforçasse a nossa depauperada marinha.
No capítulo 4 MFM fala da agonia do regime monárquico: a sucessão de governos,
o descalabro financeiro, o assassinato do rei D. Carlos e, finalmente, a
revolução republicana, na qual bastaram poucos
militares para que a coroa caísse.
O capítulo 5 trata a
1.ª República. O resumo não é famoso: “Ao fim de 16 anos de vigência, a
República estava desacreditada. Enquanto durou existiram oito Presidentes da
República, 45 governos, uma Junta Constitucional e uma Junta Revolucionária.”
Fará em Outubro cem anos que ocorreu a “noite sangrenta”, na qual foi
assassinado o primeiro-ministro António Granjo. O capítulo 6 aborda o “Estado
Novo”, o regime do “orgulhosamente sós”, que MFM viveu na sua juventude e que a
guerra colonial fez colapsar. E, no capítulo seguinte, é apresentada a
Revolução dos Cravos, de que ela, no Largo do Carmo, foi testemunha ocular.
O estilo de MFM prima
pela clareza. Em contraste com a pena de alguns literatos nacionais, diz em
frases curtas o que tem a dizer, na boa tradição anglo-saxónica. Vem daí, em
boa parte, o seu êxito jornalístico e editorial. Não há entre nós muita gente a
dizer o que pensa de uma maneira clara, pois ou dizem o que pensam de uma
maneira obscura ou dizem o que pensam os outros, obscurecendo-o. O estilo de
MFM pode ser exemplificado por uma frase tão simples e directa como esta: “Eu
queria pertencer à civilização europeia, queria viver num país mais justo e,
acima de tudo, queria ser livre”. Não são precisos rodriguinhos para se ser
grandiloquente.
2 comentários:
Sempre apreciei a frontalidade de Filomena Mónica dizendo o pensa e pensando o que diz. Obrigado Professor Carlos Fiolhais por este seu texto, com pinceladas biográficas, de uma Mulher de classe e muito bela.
Maria Filomena Mónica é uma socióloga que teve sempre a cabeça no lugar. Enquanto outras propunham medidas avulsas e antipedagógicas, como é exemplo a norma dos tempos letivos de 90 minutos para todas as disciplinas do ensino básico e secundário, só porque sim, a clarividente Maria Filomena Mónica teve a coragem de pôr o dedo na ferida que gangrena o nosso sistema de ensino: a indisciplina em sala de aula resultante da desautorização dos professores por parte dos governos democráticos que impuseram nas escolas portuguesas as ideias peregrinas dos construtivistas sociais e dos pós-modernistas. Eles defendem que o professor será tanto mais professor quanto menos ensine e, assim, mais facilite a aprendizagem dos alunos!
O mal, a juntar à pandemia da Covid-19, é que a maioria dos professores e educadores de infância portugueses não têm a lucidez nem o espírito crítico de Maria Filomena Mónica.
Sem ensino não há escola!
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