O Público publica hoje, no seu suplemento P2, um magnífico texto do investigador britânico Duncan Simpson, sobre o comportamento de uma maioria dos portugueses, durante a vigência prolongada do Estado Novo. Nada de que muitos de nós não suspeitássemos já, porque os seres humanos são aquilo que são e não aquilo que gostaríamos que eles fossem. O texto do investigador britânico dá uma excelente contribuição ao desvendar a razão por que as ditaduras são tão duradouras. Mas Duncan Simpson fez mais do que pôr de pé uma hipótese de trabalho: foi verificá-la nos arquivos que falam por si. Até agora, o ponto de vista em vigor era apenas o dos resistentes e realmente oprimidos, isto é, uma minoria. Faltava desvelar o comportamento dos que se acomodaram e também o dos que se aproveitaram. Foram, tristemente, muitos.
Vale a pena ler e meditar este texto de Duncan Simpson, porque ele nos mostra que, mesmo vivendo em democracia, a massa humana que a sustenta é, na sua maioria, volátil e é disso que os aspirantes a gauleiter se aproveitam. Duncan documenta o modo como muitos portugueses, sob o Estado Novo, perpetraram sórdidas denúncias apenas para protegerem os seus pequeníssimos interesses pessoais. Duncan nunca usa a linguagem do panfletário, antes usa a linguagem serena e objectiva do investigador sério. Eu poderia corroborar as suas observações com alguns casos da minha própria experiência pessoal. Quando fazia o meu serviço militar em Mafra, antes de ser colocado em Portalegre, para dar só um exemplo, tive uma disputa acalorada com um colega meu. Eu disse-lhe, candidamente, que o Estado Novo tinha os dias contados, como todas as ditaduras. São duras de roer mas acabam por cair. Para minha surpresa, ele reagiu, não como um sereno adversário de ideias, mas com uma fúria incontrolável. Todavia, no decurso daquela agitada discussão, fui percebendo que não se tratava, da parte dele, de qualquer profunda aderência ao regime vigente. O problema era outro e mais pequenino: ele estava noivo e profundamente apaixonado e a possibilidade de uma próxima turbulência social perturbava-lhe os planos… São assim os seres humanos, na sua maioria: acomodam-se para sobreviverem. Na belíssima peça de teatro de Montherlant, O Mestre de Santiago, há um personagem que diz isto: “Pereça o universo, mas salve-se a Espanha!” O meu colega de Mafra, no fundo, estava a dizer algo de semelhante: “Pereça qualquer sonho de restauração da democracia, mas salve-se o meu casamento!” O comportamento de um grande número de franceses, durante a ocupação nazi, também não foi edificante: procuraram salvar a vidinha do clã, como o leiteiro do fabuloso romance de Jean Dutourd, Au Bon Beurre. Não vale a pena tentar lavar a verdade, porque conhecê-la pode levar-nos a termos mais cautela com o que os populistas e para-nazis têm a possibilidade de fazer com a grande massa dos eleitores. Esta, infelizmente, não é de bronze: é, antes, de cera. Líderes sem escrúpulos e sem princípios, verdadeiros oportunistas, só esperam pela sua oportunidade para atacar. Os seus princípios éticos são como os que o imortal Groucho Marx tão bem caricaturava: “Estes são os meus princípios. Se V. não gosta deles, tenho outros.” Dizia o grande Anatole France, lídimo herdeiro de Voltaire, que, “na noite em que todos estamos, o sábio esbarra contra a parede, o ignorante fica tranquilo no meio do quarto.” Fica: aguardando a sua vez. Ungido por um Deus que ele pôs, sem escrúpulos, ao seu serviço. À democracia compete estar atenta e não complacente.
Eugénio Lisboa
2 comentários:
Caro Eugénio: Eu constatei o "amor" que certos tipos tinham ao Estado novo para terem tachos e boa renda. De um caso sei eu de um tipo com elevados cargos nessa época que, depois de 25 de Abril, ao ser confrontado por um jornalista por esse facto e, principalmente, pela sua mudança de disco a canções revolucionárias teve esta saída, não direi airosa, mas ardilosa: aceitei esses cargos para minar "as estruturas fascistas"! Há gente para tudo e de tudo!
Enquanto historiadora que fez o primeiro estudo sobre a PIDE, revolto-me contra a apropriação do meu trabalho sobre informadores de alguém que julga que me insulta chamando-me antifascista. Este trabalho não é novo. Desde a minha tese de Doutoramento (2006) e o meu livro que consultei os arquivos de informadores e candidatos a informadores da Torre do Tombo e do Ministério do Interior. Denunciarei as falsidades e a apropriação no Público do próximo domingo. O senhor em causa explora a ignorância das pessoas Irene Flunser Pimentel, autora de A História da PIDE, de 2007. Estou revoltada.
Enviar um comentário