Uma professora do Ensino Secundário, licenciada pela Universidade de Coimbra, onde fez também Mestrado e Doutoramento em Ciências da Educação, escreveu a Carta Aberta dirigida ao Ministro da Educação que se pode ler abaixo. Publico-a porque sei que o seu conteúdo corresponde inteiramente à verdade. As palavras utilizadas traduzem, de modo exemplar, aquilo que tem vindo a ser designado por "sofrimento ético". É um sofrimento que não está apenas presente na profissão docente, mas isso não pode servir de argumento para o menorizar. Ele está, de facto, presente no trabalho do professor e de forma continuada e crescente, pelo menos de todo o professor que é digno desse nome.
Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação
Sou professora de Filosofia, quase no final da carreira e, tendo uma vida dedicada, com afinco e amor, ao ensino e à educação, não posso deixar de frisar que, sinceramente, nunca me senti tão humilhada como no contexto da atual avaliação do desempenho docente.
Os aspetos que passo a explanar dão voz à maioria dos docentes, embora não sejam verbalizados por eles, certamente porque a “espiral do silêncio” que se tem disseminado por vários setores da sociedade portuguesa, atingiu, igualmente, as escolas, calando as angústias experienciadas por todos. Sim, Senhor Ministro, neste nosso Portugal de Abril, existe medo! Em muitas escolas está presente o medo dos diretores, o medo da avaliação, o medo de quem detém poder, o medo de ser discriminado, ostracizado.
A avaliação docente consignada no atual quadro legal já é propícia a injustiças, situação agravada de forma exponencial pelo modo como é tratada em muitas escolas, ouvindo-se, em surdina, que cada avaliador procede como entende, sendo a avaliação que se obtém, amiúde, uma questão de sorte! A atual avaliação legitima o argumento da falsa autoridade quando permite que docentes sejam avaliados por colegas de outro grupo e por avaliadores com preparação científica e pedagógica inferior.
Ora, os avaliadores estão a lidar com pessoas e, sempre que nos movimentamos neste terreno, as consequências podem ser devastadoras. No caso da avaliação docente as consequências de certas avaliações são duplamente nefastas. Por um lado, comprometem a carreira, o futuro dos docentes e, por outro lado, afetam-nos em termos pessoais e psicológicos, atingem profundamente a dignidade profissional de quem se dedica, com brio e compromisso, àquilo que faz, e para o qual é convocado.
É certo que podem ter o apreço dos alunos, situação que é partilhada por vários docentes. Felizmente, a maioria dos alunos reconhece o nosso trabalho e abnegação, presenteando-nos com palavras de carinho e agradecimento, como já tantas vezes me aconteceu.
Dir-me-á que essa é a melhor avaliação! Concordo. Todavia, a outra avaliação é determinante na progressão da carreira docente, para além de poder constituir um alento ou matar os sonhos, mais íntimos e genuínos, que cada um guarda no mais profundo de si, e que constituem a base das finalidades educativas que preconiza.
Sim, à educação subjaz a utopia. Educar, ensinar, é crer que o melhoramento ôntico é possível! É aspirar à perfectibilidade humana, ainda que tal se afigure inalcançável. Sem estes pressupostos falha qualquer verdadeiro projeto educativo.
Remato esta missiva, evocando o Decreto-Lei n.º 79/2014, que se refere à profissão docente como “a nobre e exigente tarefa de ensinar”. Ora, tão nobre tarefa deve ser objeto de reflexão e avaliação criteriosa, e que faça jus ao trabalho e entrega daqueles que a desempenham.
Muito respeitosamente,
Maria Dulce Ribeiro Marques da Silva25 de fevereiro de 2021
4 comentários:
Grande Dulce Ribeiro! Concordo plenamente e, infelizmente, estou a sofrer na pele esta injustiça!
Com Maria de Lurdes Rodrigues (MLR) em 2008, os professores travaram uma luta sem precedentes contra a avaliação do desempenho docente (ADD). Não porque a rejeitem, mas porque a constituição de um processo eficaz de avaliação docente, enquanto objetivo correto, necessário e desejável, não justifica a assunção de métodos errados (Santos, et al., 2009). A interferência dos resultados da ADD na progressão da carreira é algo sério demais para que o processo possa ser tratado de uma forma superficial, ligeira e, fundamentalmente, injusta. Mais de dez anos volvidos e o assunto continua na mesma. O fingimento foi sustentando a asneira enquanto a progressão dos professores estava congelada. Com a sua retoma voltou a degradação no relacionamento interpares com consequências negativas no seu trabalho.
Num recente estudo, que pode ser visto integralmente aqui(1), com o objetivo de validar o instrumento da ADD vigente, mostra que os resultados da sua aplicação evidenciam uma heterogeneidade alta ou muito alta das classificações obtidas no total das aulas observadas e em cada uma das quatro variáveis dependentes, dois parâmetros de índole científica e outros dois de índole pedagógica, que integram o modelo de avaliação. Com recurso à estatística adequada, a fiabilidade evidencia, na grande maioria dos casos, um acordo insignificante ou mediano. A enorme variabilidade e dispersão dos dados parece dever-se à subjetividade que enforma o instrumento de observação. De facto, “jamais se poderá medir o que não se pode definir” (Anguera, 1998, p. 45). Que mais poderíamos esperar quando o avaliador é confrontado com a subjetividade dos descritores, a exemplo, “o professor domina plenamente os conteúdos curriculares”, “o professor domina muito bem os conteúdos curriculares”, ou “o professor domina bem os conteúdos curriculares”.
Termino com um episódio rocambolesco, mas real e atual. A favor do modelo implementado, MLR argumentava que o anterior não avaliava o mérito e que os professores progrediam com base somente no tempo de serviço. Facto verdadeiro, professores concordam. O que temos agora? Dos 32 docentes avaliados, 8 foram agraciados com a menção de mérito (Excelente ou Muito Bom). Sabendo de que 10, destes 32 professores, fazem sempre uso, legitimamente, dos instrumentos que salvaguardam os direitos e garantias, refiro-me à reclamação e ao recurso, avaliadores internos e externos concordam entre eles e atribuem 10 valores a cada um deles, resultando 10 “excelentes”. Ora, o critério de desempate conferido na alínea d), artigo 22.º do Decreto Regulamentar n.º 26/2012, de 21 de fevereiro, remete para o cálculo da graduação profissional. E assim ficou, as 8 menções de mérito ficaram para os professores com mais tempo de serviço, tal como acontecia, erradamente, no modelo que vigorava até então. Para além de mau, o modelo de ADD é pernicioso e contraproducente, produz efeitos contrários aos desejados.
1.
https://revistas.rcaap.pt/motricidade/issue/view/869
(Vol 14 No S1 2018 (pp. 203-216)
Bravo, Dulce! Tenho orgulho e o maior respeito por si, como colega, como profissional, como ser humano, defensora e lutadora pelos Direitos Humanos.
Lamento que no País do Abril, da luta pela igualdade, sejamos confrontados com o medo, com as atrocidades da avaliação, da conduta de colegas que se aproveitam do "poleiro"...
Infelizmente sei que tem razão em tudo o que refere.
Grata pela sua iniciativa, grata por incluir todos os professores, grata pelo seu empenho e brio profissional.
Muito bem!Dulce,agradeço o teor da carta, encaro-a como sendo, também, a minha voz... Ao silêncio, medos e receios, "efetivos" nas escolas, acrescento o "professor expeditor", esse ser atafulhado no mundo kafkiano de... onde lhe é quebrado o cordão umbilical que o liga ao espírito crítico. Urge(re)colocar o professor na Escola.
Grato.
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