Em 18/12/2003, num artigo no Público, um dos mais experientes e respeitados cientistas portugueses, o Prof. Filipe Duarte Santos, da Universidade de Lisboa, físico nuclear teórico que se tem interessado pelas mudanças de clima globais, depois de criticar asperamente a penosa burocracia da FCT, a propósito da avaliação das unidades de investigação (foi premonitório: o que começou mal só podia acabar mal), chamou a atenção para o aspecto da defesa do desenvolvimento social e económico do país que a FCT desprezou completamente. Cito-o:
"Tanto agora como no passado recente, o grande e aparentemente único objectivo da FCT é a excelência da investigação científica. É praticamente impossível encontrar alguém discordante de que devemos procurar fazer em Portugal investigação de qualidade excelente, daquela que é publicável naScience e na Nature, para dar um exemplo concreto.
Mas será este o único objectivo da ciência em Portugal? Será que apresentar excelentes índices bibliométricos de publicações científicas em Bruxelas e na OCDE deve ser o principal objectivo da actividade científica em Portugal? E a contribuição da ciência e da tecnologia, feita em Portugal, para potenciar o seu desenvolvimento social e económico, para aumentar a competitividade e a capacidade de exportação, para usar a linguagem em vigor no momento actual?
Sabemos que os países mais industrializados, mais desenvolvidos e com melhor qualidade de vida investem muito em ciência e tecnologia. A principal razão desse investimento é defender os interesses nacionais e a competitividade económica a nível internacional. Uma parte importante desse investimento faz-se para conhecer e monitorizar o território, os recursos naturais e o ambiente. Sem essas actividades não é possível ter políticas de gestão de recursos naturais e de ambiente adequadas.
É evidente que os processos de conhecimento, avaliação e monitorização do território, dos recursos naturais e do ambiente não constituem o caminho mais curto para publicar na Science ou na Nature. Em Portugal tem-se por vezes a sensação de que ainda estamos a tentar provar ao mundo que somos capazes de escrever muitos artigos por ano e per capita (5, 10, 20 ou mais) em revistas com sistema de arbitragem científica de grande impacto. Claro que somos!
Nos países mais industrializados a ciência e a tecnologia servem sobretudo para ajudar a construir e a validar as políticas públicas nos mais diversos sectores. Em Portugal avaliou-se alguma vez de forma sistemática e quantificada os benefícios que o investimento do Estado em ciência e tecnologia trouxe efectivamente para as políticas públicas? Qual tem sido a evolução do retorno para a sociedade deste tipo de investimento? Neste ponto é muito importante salientar que o retorno da investigação aplicada é mais directo, tangível e quantificável do que o da investigação fundamental, embora esta seja também imprescindível."
Filipe Duarte Santos
6 comentários:
Que nunca a voz vos doa. Apoio a vossa luta e, apesar de não passar de uma voz anónima, far-me-ei eco dela sempre que me pareça oportuno (o que, no lastimável estado em que está a nação é quase a toda a hora).
A si felicito-o pela sua acutilância e frontalidade.
Os nossos governos não têm revelado um mínimo de fundamentação científica das decisões que vão tomando, ao sabor de interesses, nomeadamente partidários e plutocráticos. Comportam-se como ratos que roem o casco do navio em que viajam, ignorando que ele pode começar a meter água. Não fundamentam a necessidade das decisões, nem, muito menos, de umas em vez de outras, nem os efeitos e as consequências que esperam delas ou que elas possam vir a ter.
Mas governar terá de ser cada vez mais fazer a gestão do público pré-ordenada a interesses e objetivos humanos definidos por estudos científicos e avaliados enquanto fatores, nomeadamente ecológicos e de sustentabilidade ambiental.
Raramente ou nunca os governos explicam aos "súbditos" a bondade das medidas que tomam nem porque são melhores do que outras que também podiam ser tomadas.
Vai-se fazendo uma gestão de funcionamento, tipo tapa-buracos, mas abrindo uns para tapar os outros...
Estamos muito longe de assistir à implementação de políticas consistentes que não sejam elas próprias uma emenda pior do que o soneto, ou um problema maior do que aquele que se propõem resolver. Quantos ganhos e retornos haveria para o país de uma aposta em investigação científica para tentar identificar claramente e resolver da melhor forma os problemas do país?
"Em Portugal tem-se por vezes a sensação de que ainda estamos a tentar provar ao mundo que somos capazes de escrever muitos artigos por ano e per capita (5, 10, 20 ou mais) em revistas com sistema de arbitragem científica de grande impacto. Claro que somos!"
Sim, somos. Alguns… Mas há 40 anos atrás não éramos.
A discussão do papel da ciência numa sociedade como a nossa é difícil, pois sofre do paradoxo "do ovo e da galinha": se não há pessoas qualificadas nunca se poderá basear um desenvolvimento nessas qualificações, mas no imediato o sistema produtivo não tem muita necessidade dessas pessoas. Trata-se forçosamente de um processo de co-evolução.
Mas é mais fácil a sociedade produzir voluntariosamente pessoas qualificadas do que produzir voluntariosamente um sistema produtivo moderno que delas precise. Diria que neste caso o ovo deverá preceder a galinha. Para além de outros aspectos positivos, tais como que uma sociedade educada e qualificada tem muito mais opções à sua disposição (emigrar para trabalhos razoavelmente bem pagos na Alemanha, por exemplo) que uma sociedade desqualificada.
O meu historial de trabalho ligado à indústria não me proporcionou um dossier com publicações teóricas eruditas, daquelas que o Professor Filipe Santos refere. Sem desprezar todos os criadores de artigos de referência, recheados sempre de palavras maiores, sinto, tal como nos indica o Professor, que não existe uma intensa dedicação dos "sábios" para conseguir encontrar e oferecer ao País possibilidades de melhorar a situação real da sociedade, da qual também fazem parte estes eruditos.
Neste campo estamos na situação equivalente à dos grupos de estudo, das múltiplas comissões especiais, que no melhor dos casos produzem extensos relatórios, cheios de prosápia, mas que nada resolvem. Depois, os sábios cá do sítio, ficam muito ofendidos por a cidadania os qualificar de pavões practicamente estéreis, pelo menos no aspecto utilitário.
Quando era estudante universitário referia-se uma tirada, possivelmente apócrifa ou inventada, de alguém ter dito: Só sábios éramos dez. De então para cá passaram mais de 50 anos. Terá mudado alguma coisa?
Caro Albert
O artigo de Filipe Duarte Santos, (de 2003) aqui citado chama a atenção para aspectos importantes da ciência em Portugal, questionando nomeadamente os métodos de avaliação (tipo folha excel) e a contribuição da ciência e da tecnologia para potenciar o desenvolvimento social e económico. Ora é isto mesmo que está em causa. A avaliação que foi feita às unidades de investigação usou esses métodos e, ainda por cima, mal, e ignorando a defesa de interesses nacionais em áreas do conhecimento que deveriam fazer parte de uma estratégia com vista à competitividade económica a nível internacional. Há áreas que, pela sua natureza, não deveriam ser avaliadas por painéis de peritos exclusivamente estrangeiros.
Meu caro Albert, alguma coisa mudou nos últimos 50 anos. Há 50 anos, eu tinha esperança. Sabia que o regime da altura não iria durar muito. Agora não há expectativa de mudança, a não ser para pior. A desigualdade social cresce inexoravelmente, como se pode ver no livro (demasiado extenso) de Thomas Piketty “Capital in the 21st century” (ver por ex. site do autor).
Os dez “sábios” de há 50 anos agora são muito mais, e mandam na governação. A investigação científica e de desenvolvimento tecnológico que, apesar de tudo, existe, é feita à custa de mão de obra barata, embora bem qualificada. E está em risco de acabar.
Luis Alcacer
O artigo é de 2013. Não de 2003.
Público, 18.12.2013, já no âmbito deste processo de avaliação das unidades de investigação.
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