Agora que, após a tragédia da morte à beira-mar de seis estudantes da Universidade Lusófona provavelmente no decurso da realização de uma praxe (mas quais são as tradições daquela Universidade para terem duxes veteranoruns a mandarem em praxes?), o assunto volta à ribalta, lembro um artigo que publiquei no Público há quase seis anos. Infelizmente, não perdeu a actualidade. Não há que mudar uma só vírgula.
A tradição já não é o que era. Pela primeira vez em muitos anos o cortejo dos quartanistas da Queima das Fitas de Coimbra realizou-se num domingo e não numa terça-feira. Para manter a tradição, um grupo de descontentes decidiu desfilar não só no domingo, mas também na terça-feira, depois de terem tentado invadir algumas escolas básicas da cidade.
A quebra de tradição, que segundo o Dux Veteranorum, foi ditada pelo Acordo de Bolonha que agora rege o ensino superior europeu, não se ficou por aí. Está tudo trocado. A serenata monumental foi adiada de um dia e a missa com bênção das pastas passou para o final de tudo. Mas a mudança foi ainda mais radical: na “noite do parque” de domingo, que agora não é no parque mas no “queimódromo”, pela primeira vez em 22 anos, o espectáculo não foi do inefável Quim Barreiros, mas sim de José Malhoa. Apesar de haver descontentes (Queima sem Quim não é Queima), dentro do género pimba, foi troca por troca. Em vez do Chupa Teresa cantou-se e dançou-se o Baile de Verão (A lua estava a sorrir / A tua boca a pedir / E toda a aldeia também / A querer nos ver acertar.) Houve gritos a pedir casamento: Zé dá-me a tua filha. A cerveja é que continua a ser da mesma marca que nos outros anos.
O Porto tem feito tudo para imitar Coimbra. Também tem um Dux Veteranorum, “noites do parque”, um “queimódromo” e um acordo com uma marca de cervejas (a mesma de Coimbra). Mas não a imitou nas mudanças deste ano. No Norte, a tradição ainda é o que era, com a missa antes do cortejo de terça-feira e com Quim Barreiros depois. Em Lisboa, que tem mais escolas superiores, a Semana Académica é talvez menos intensa, tendo sido desterrada para os arredores. E há outras queimas, com esse ou outros nomes, em todas as cidades com universidades ou politécnicos. Eles, nesta altura do ano, pimba!
Por mim, que estudei num tempo em que as praxes estavam interrompidas, confesso que estes festivais de berraria não me dizem muito. Mas, embora incomodado pelos decibéis do Baile de Verão que me entram pela janela (por isso é que sei a letra do baile), acho bem que os jovens se divirtam nesta época do ano, desde que não exagerem nos exageros. Trata-se não só de uma praxe juvenil como de uma festa familiar: os filhos bêbedos e os pais babados (ao contrário seria pior).
Há, todavia, nas praxes académicas coisas que não acho nada bem. Está em tribunal o caso de uma aluna da Escola Agrária de Santarém que foi besuntada com excrementos de suíno e, depois de ter sido vítima de sevícias sexuais, pendurada, de cabeça para baixo, em cima de um penico. Não acho bem que o julgamento, com sentença prevista para fins de Maio, tenha demorado cinco anos. E também não acho bem que o Ministério Público só tenha pedido uma “pena simbólica” para os seis energúmenos. Este é apenas um exemplo, porque há mais. Um caso de outra praxe violenta e sexista em Macedo de Cavaleiros terminou em Março passado com a absolvição. Em Dezembro último um estudante da Escola Agrária de Coimbra ficou paraplégico numa praxe ao escorregar sobre uma vala com bosta (não sei se haverá julgamento). O ministro bem poderia imitar D. João V na morte de um caloiro: Hey por bem e mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos.
E não posso aprovar – até porque é anticonstitucional – a discriminação de que as mulheres são vítimas nos códigos da praxe. O Dux Veteranorum de Coimbra declarou que elas não podiam usar colete no traje académico, ficando essa peça reservada aos homens. Por seu lado, e na mesma linha, o Dux do Porto defendeu que os fados e as serenatas são coisas de homens. Segundo ele, a interpretação do fado académico pelas mulheres seria inverter os papéis do macho e da fêmea, se as fêmeas fossem fazer serenatas aos homens onde é que íamos chegar? Parece que há mulheres que aceitam este tipo de restrições. Eu, se fosse mulher, revoltava-me. Mas não sou e revolto-me na mesma.
Carlos Fiolhais
3 comentários:
Se fosse eu, matava o porco sem me revoltar. A frieza é fundamental.
Uma vez, em Coimbra, quando, por mera curiosidade, entrei num curso inútil, uns ameaçaram-me, de capa aberta e cheia de emblemáticas nódoas, que me cortavam o cabelo, que fosse eu a escolher a tesoura, que esse pedaço de mim iria ser exposto num qualquer museu de orgulho nazi...
Não é que se me eriçou o longo, longo, longo cabelo?
Nunca mais os vi!
Acho que as personalidades hirsutas provocam desistências. Foi o que concluí.
Muitos outros casos há que nem chegam aos jornais, pelo menos alegando como causa a praxe.
Há uns oito anos uma ex-aluna suicidou-se , atirando-se da janela do seu quarto, em Vila Real , depois de mais uma incursão dos praxistas . Garota tímida e introvertida,oriunda de uma pequena cidade, provavelmente deprimida pela distância da família , não aguentou tanta dedicação dos colegas para a integrar.
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