domingo, 19 de janeiro de 2014

O PILHA-GALINHAS

O pilha-galinhas, como lhe chamávamos, era um maltês, quase sempre desempregado por falta de trabalho, descalço e andrajoso no aspecto, alegre e arguto na conversa. Fornecia-nos galinhas ou frangos, conforme calhava, escondidos, quase sufocados, dentro de sacos, no fundo do alforge que transportava ao ombro. Vendia o que trazia, e por bom preço. Chegava sempre ao cair da noite, vindo dos campos.

O trajecto na cidade fazia-o pelos sítios mais esconsos e escuros, em passadas rápidas e furtivas. A mãe nunca «teve interesse» em perguntar-lhe a proveniência da mercadoria, nem nunca ele se lhe referia, embora fosse um falador cheio de histórias para contar. O negócio, porém, era feito com o mínimo de palavras, portas adentro. O nosso amigo sacava a galinha, algumas vezes um galo, pegando-lhe pelo pescoço para que não «gritasse» e, em conjunto com a mãe, avaliavam-lhe o peso e o preço. Seguia-se uma breve discussão sobre a quantia a pagar, que ela acabava sempre por ganhar.

– O mês passado – contou – fui apanhado já dentro da cidade, com o saco cheio, antes de fazer qualquer negócio.
– Tinha seis franganitos no alforge, quando me deitaram a mão. Levaram-me para a Esquadra e fiquei lá no calabouço toda a noite. No outro dia, logo de manhã e sem comer, veio um zarolho, de bigodes, grande como um touro. Mandou-me pôr de joelhos no chão de pedra onde tinha espalhado sal grosso. Mas primeiro fez-me arregaçar as calças.
– Eu já não aguentava mais – continuava o pilha-galinhas. Ao lado da mãe, curioso, eu bebia-lhe as palavras.
– Se fazia menção de me levantar, ferrava-me chibatadas na cara, nas costas, onde calhasse. E era com cada uma! Fiquei cheio de vergões. Os joelhos ardiam-me do sal espetado na pele. Não aguentava mais! Filhos dum comboio de putas, com sua licença, que isto até faz perder a cabeça a um homem!
– Onde roubaste os frangos? – insistia o agente da autoridade.
– Foi na Quinta do Alexandre. Não tive outro remédio senão confessar. Já não resistia mais, dona Adília. Tenho quatro filhos pequenos com fome e não arranjo trabalho já lá vão três meses. É sempre isto todos os anos, lá no monte.
– E depois, o que é que lhe aconteceu? – quis saber a minha mãe, interessada.
– Deram-me mais pancada e depois mandaram-me embora.
– E os frangos? – perguntou a mãe, curiosa.
– Ficaram os malvados com eles – respondeu – E ficaram também com a minha navalha que bem falta me faz. – acrescentou desolado.
– Mas olhe – dizia o nosso homem – ainda prefiro a Polícia à Guarda. Tenho um medo daqueles tipos das patrulhas que me pélo. Deus me livre de ser caçado por eles. Esses ainda são piores. Diz que têm pêlos até no coração e há lá um que parece que nunca teve mãe. Estão feitos com os patrões e, afinal, são tão pobres como nós.
– Para mim, – continuava o pilha-galinhas - os tipos da Guarda Republicana são homens do campo como eu. Mas são uns madrações que se deram bem na tropa lambendo as botas aos sargentos. Maus para os camaradas, só pensavam neles próprios. Gostam do rancho a horas e de se verem dentro da farda. Disseram adeus à desgraça da vida do campo – rematou.
– Dois primos meus e um vizinho que foi comigo às sortes – acrescentava – ficaram na Guarda. Hoje estão bem e vivem à grande. Não passaram de cabos mas quem me dera estar como eles. Esses sabujos preferem vergar a espinha com vénias aos superiores e aos ricos, a dobrá-la agarrados à enxada. Agora não lhes falta nada e já nem se lembram que foram pobres. Aquela tropa é como certos cães que nunca vêm à mão. Não se pode fiar neles. Nunca se lembram de quem lhe deu o pão e, à primeira, ferram a valer. Até atiram a matar. Irmãos contra irmãos. Aquilo não é gente, é outra espécie de criaturas, dona Adília. Só os pobres é que sabem como eles são por dentro. – concluía o pilha-galinhas com expressão de entendido.
– Toda a gente lhes dá qualquer coisa, como aos padres. Julgam, assim, que os têm a mão ou que eles lhes podem valer numa aflição, mas enganam-se. Quando passa a patrulha há sempre quem lhes leve uma atenção. São os ovos, é uma galinha aqui, um coelho ali, são as azeitonas, os queijos e o feijão, é uma lebre ou umas perdizes no tempo da caça, ou mesmo fora dele, no defeso, que eles aí nem olham. Na Páscoa, lá apanham às vezes um borreguinho. Os mais pobres dão aos praças das patrulhas aquele pouco que podem. Eu já nem sei – e aqui o pilha-galinhas dava à voz e à expressão um tom de muita confidencialidade – se eles passam lá nos montes para cumprirem o giro se para receberem a colecta. Filhos da mãe!

Sem se calar, o nosso furtivo visitante, retomando o fôlego, continuava nas suas considerações enquanto ia comendo um grande tassalho de pão com linguiça e um púcaro de café de cevada bem quente que a mãe lhe preparara
– Faz-me cá uma falta a minha navalha! Dê-me aí uma faca, dona Adília, que os meus dentes já não entram assim no pão. Malvados! – deixava escapar, em surdina, aludindo aos polícias que haviam ficado com a sua navalha.
– Aos chefes e comandantes, aos mais graúdos, quem lhes dá são os lavradores. – continuava ele, retomando o fio à conversa. – A esses, quem dá são os ricaços. Apanham do bom e do melhor. É a lenha às carradas, para o Inverno, é o azeite para o ano todo, fora o porco, no Natal.
– É assim a vida! - exclamava a mãe começando a pôr fim à conversa e acrescentava, já em jeito de despedida:
– Se vossemecê me arranjasse uma peruazinha agora para o Natal, dava-me governo. Não precisa de ser grande.
– Não vai ser fácil. Deixe ver. Se eu conseguir, trago-lhe uma.– E desaparecia furtivo e silencioso como chegara.

Como eu, também a mãe gostava de o ouvir, mas faltava-lhe o vagar. O jantar ainda estava a fazer. Era muito boca a comer e daí a nada chegava o pai.
- Ó mãe, o pilha galinhas é ladrão?
– Não! – e acrescentava, desviando a conversa – Amanhã fazemos cabidela de sangue para o almoço.
Ainda envolvido pelas histórias ouvidas, continuava:
– Ó mãe, eu não tenho medo do pilha-galinhas. Gosto dele. Mas ela já não me ouvia, absorta que estava no muito que ainda tinha para lidar.
– Vai buscar a toalha para ires pondo a mesa...

A. Galopim de Carvalho

4 comentários:

Judite Castro disse...

:) Gostei muito :) :) :)

Cláudia da Silva Tomazi disse...

De quando história toma fé a partida.

Anónimo disse...

Cláudia: aguação e presumbenta cada quer toma a que um. Percebeu?

João Boavida disse...

Outro belíssimo texto retratando o Portugal dos anos 40/50.
Parabéns.

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