Surgimento da moderna paleontologia. Os séculos XVII e XVIII.
Nicolau
Steno (1638-1696)
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Cabeça
de tubarão branco, numa xilogravura de Nicolau Steno, de 1667.
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Esta afirmação, hoje evidente, representou, para a época, uma inovação e um romper com as ideias do passado. Com esta frase, inovou o conceito paleontológico de fóssil, no que foi apoiado pelo filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) e pelo físico e naturalista inglês Robert Hook (1635-1703), lembrado como uma das figuras chave da revolução científica do século XVII.
Steno postulava que, se as conchas e outros restos de antigos seres vivos encontrados nas rochas de uma dada região são despojos de animais marinhos, as camadas que os contêm são necessariamente marinhas, concluindo que o mar ocupara essa região. Com estas afirmações, e embora sendo respeitador do tempo bíblico e dos relatos das Sagradas Escrituras, inovou também o conceito de fácies, definida como o conjunto de características paleontológicas, mineralógicas ou outras que permitem conhecer o ambiente em que a rocha se formou. Para muitos dos seus contemporâneos, era intrigante o facto de um animal petrificado e, portanto, sólido, estar dentro de uma rocha também ela sólida. No livro que publicou em Florença, em 1669, “De solidus intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus”, Steno deu a necessária explicação a este problema e ao levantado por outros corpos sólidos (cristais, veios, filões, camadas, encraves) embutidos no interior das diversas rochas.
Na mesma linha de afastamento das explicações mais conservadoras, Robert Hook combateu, veementemente, a ideia generalizada de que os fósseis eram o resultado de virtudes operadas no seio das rochas ou que surgiam sob o efeito de influências celestiais. À semelhança do seu contemporâneo dinamarquês, interpretava os fósseis como restos de organismos que haviam sido submetidos a um processo de petrificação. Numa ousadia que atentava contra a crença religiosa da unidade da Criação, chamou a atenção para a existência de fósseis cujos indivíduos não têm representação actual, aceitando, portanto, que havia, no presente, novas espécies.
Defensor da mesma visão, Leibniz reconheceu os fósseis como vestígios petrificados de seres vivos do passado, actualmente extintos, e, nesta medida, é também lembrado como um dos fundadores da paleontologia. Ao afirmar que “nas múltiplas mudanças operadas na Terra ao longo do tempo, um grande número de seres sofreu transformações”, Leibnitz lançou a semente do transformismo.
Em Inglaterra, na mesma época, o botânico John Woodward (1665-1728), influenciado pela abundância de fósseis que lhe foi dado observar no condado de Gloucester, organizou uma numerosa e valiosa colecção de “petrificados” que fez história, de início, como núcleo do Museu Woodwardiano, em Cambridge, e, posteriormente, como acervo do Museu Sedgwick, na mesma Universidade. O livro que nos deixou, An Attempt towards a Natural History of the Fossils of England, em dois volumes (1728 e 1729), é expressão do seu muito saber como paleontólogo.
No livro “Helvetica Lithographia”, publicado em 1726, o médico e naturalista suíço Johann Jakob Scheuchzer (1672-1733) descreveu, em 1726, um esqueleto fóssil, retirado de terrenos do Miocénico, perto do Lago Constança, que identificou como sendo de um homem (Homo diluvii) vitimado pelo Dilúvio.
Esta descoberta, aproveitada pela Igreja como demonstrativa da veracidade desta crença, vingou até 1811, data em que o naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), lembrado como pai da anatomia comparada, reexaminou o dito fóssil e identificou-o como uma salamandra gigante, dando, assim, um violento golpe no diluvianismo.
Na mesma época, o cônsul francês no Egipto, Benoit de Maillet (1656-1738), divulgava uma teoria sobre a evolução da Terra, segundo a qual teria havido alternância de períodos de invasão e de recuo do mar ao longo do tempo geológico que, ousadamente para a época, estimava em muitos milhões de anos. Antecipando os conceitos de transgressão e regressão marinhas, foi pioneiro na ideia que considera a vida terrestre como uma transformação adaptativa da vida marinha.
Ao tempo em que o naturalista sueco Carl von Linné (1707-1778), na sua obra Systema Naturae (1758), iniciava a sistemática dos seres vivos, Anton Lazzaro Moro formulava inovadoras teses sobre a origem dos fósseis marinhos. Investigando sob a pressão dos compromissos e restrições de natureza religiosa e incompreendido por muitos, que o acusavam de desrespeitador da Fé, este abade e vulcanista veneziano foi autor de avanços notáveis relativamente à paleontologia encarada como disciplina científica, com destaque para o livro "De Crostacei E Degli Altri Marini Corpi" (1740), no qual expressa as suas ideias sobre as mudanças verificadas depois da Criação.
Nesta linha de abandono das explicações fantasiosas ainda prevalecentes, o naturalista francês George-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido por Buffon, defendia que as conchas encontradas no seio de algumas rochas eram restos de moluscos marinhos desaparecidos e recuperava a expressão “espécies perdidas” criada dois séculos atrás, por Bernard Palissy, muito antes do nascimento da paleontologia como ciência.
Considerado a figura central de todo o pensamento na história natural, na segunda metade do século XVIII, Buffon foi o fundador do embrião do Museu Nacional de História Natural de Paris, cujo papel no domínio do progresso da paleontologia é um dado histórico. Na mesma época, o chamado “Sistema Woltersdorf”, considerado uma das mais antigas classificações dos produtos não vivos da Terra, divulgada em 1748, pelo teólogo e mineralogista alemão, John Lukas Woltersdorf (1721-1772), mostra que o autor já reconhecia os fósseis como restos de seres vivos petrificados. Com efeito, além das classes que incluíam rochas e minerais (Terrae, Lapides, Sali, Bitumina, Semimetala, Metala), distinguia a classe Petrifada, na qual reunia restos de vertebrados e invertebrados, continentais e marinhos, bem como de vegetais.
Anos mais tarde, o naturalista francês, Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), mais conhecido por Lamarck, na sua obra “Historie Naturelle des Animaux sans Vertèbres”, editada em 1802, dava verdadeiro início à paleontologia dos invertebrados. Foi também este naturalista quem apresentou a primeira teoria fundamentada sobre a evolução dos seres vivos, logo contestada pelo seu contemporâneo George Cuvier (1769-1832), catastrofista convicto e adversário assumido das ideias de Lamarck. Introdutor do criacionismo, Jean Leopold Nicolas Fréderic Cuvier, de seu verdadeiro nome, defendia que a Terra sofrera extinções periódicas de muitos animais, seguidas por períodos de acalmia, durante os quais teria lugar nova criação.
Fundador da anatomia comprada e da paleontologia dos vertebrados em termos modernos, trabalhou no Museu Nacional de História Natural de Paris como assistente e em estreita colaboração com o zoólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1779-1844). No seu livro “Leçons d’anatomie comparée”, editado em 1800, Cuvier formulou o chamado “Princípio da Correlação das Partes”, segundo o qual “as características anatómicas e funcionais dos vertebrados estão relacionadas entre si e com o ambiente”.
A anatomia comparada nos vertebrados permitiu aos paleontólogos reconstituir a configuração corporal correspondente aos ossos que iam sendo achados e, ainda, a reconstituição de espécies fósseis desconhecidas. Uma outra contribuição de Cuvier para a paleontologia foi ter aplicado os conhecimentos da zoologia e da botânica actuais ao estudo dos animais e plantas fósseis. Defensor de uma visão catastrofista da História da Terra, mostrou que os esqueletos fósseis de mamutes e mastodontes eram diferentes dos elefantes actuais, dando, assim, ênfase ao seu conceito de extinção. Cuvier estudou os fósseis da Bacia de Paris, onde reconheceu uma série de sucessivas faunas, tendo verificado que as camadas sedimentares mais jovens desta série continham fósseis de vertebrados mais próximos dos que existiam na actualidade e que nenhum deles tinha representação em animais do presente.
Concluiu, então, que esses fósseis correspondiam a animais do passado que se extinguiram. Também ele, um catastrofista, Alexandre Brongniart (1770-1847), geólogo e mineralogista francês, teve papel notável como paleontólogo. Realizou um importante estudo sobre trilobites e contribuiu com elementos pioneiros para a estratigrafia, através do conhecimento de fósseis, passíveis de datar os estratos de rochas sedimentares. Quando o número e a variedade de fósseis, encontrados e estudados pelos paleontólogos pioneiros, ganhou uma dimensão suficientemente importante, a Igreja não pôde continuar a negar que tais achados eram restos de seres vivos do passado e, assim, os clérigos mais conservadores defendiam que os fósseis correspondiam a restos de animais vitimados pelo Dilúvio bíblico.
Foi neste quadro que William Smith (1769-1839), iniciador da paleontologia estratigráfica, desenvolveu as suas ideias. Além de geólogo de renome, este inglês foi grande inovador no domínio da paleontologia. O seu trabalho contribuiu para pôr fim à interpretação, advogada pelas Escrituras, que negava a origem orgânica dos fósseis. Ao demonstrar o valor dos fósseis no reconhecimento das camadas geológicas, o seu trabalho foi decisivo no estabelecimento de uma geocronologia relativa e no desenvolvimento da estratigrafia. Smith verificou que determinada sobreposição de estratos de rochas sedimentares, observável num dado lugar, se podia encontrar noutros locais e concluiu pela possibilidade de caracterizar cada estrato pelo conjunto dos fósseis nele incluídos.
Concluiu, ainda, que a mesma sucessão de estratos podia ser encontrada em muitas regiões do país. Esta sua conclusão permitiu-lhe formular o “Princípio da Sucessão Faunística”, cuja consistência procurou e pôde ser verificada em termos universais. No seu trabalho, ”Treatise on the Classification of Strata”(1815) reuniu, estudou e figurou uma vasta colecção de fósseis, possibilitando a outros estudiosos testar a sua teoria.
Uma das
figuras publicadas por William Smith, em 1815
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A sua origem numa família muito humilde dificultou-lhe a aproximação à sociedade erudita e elitista de então e, assim, muito da sua obra permaneceu ignorado pela comunidade científica, por demasiado tempo. O seu trabalho foi plagiado por intelectuais aristocratas sem escrúpulos da então recém-formada Sociedade Geológica de Londres, que o havia rejeitado.
Smith trabalhou durante muitos anos como agrimensor, até que um dos seus empregadores reconheceu os seus méritos e o impôs à dita Sociedade. Finalmente aceite entre a comunidade científica nacional e internacional, Smith projectou-se com a distinção e as honrarias que lhe eram devidas.
Continua aqui.
A. Galopim de Carvalho
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