sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

CRÓNICA DE INVERNO

Transcreve-se uma crónica de Eugénio Lisboa, publicada no blogue "Livres Pensantes"(31/12/2013):

No dia 15 de Julho de 1960, por ocasião da Convenção do Partido Democrático, J. F. Kennedy cunhou uma frase para a eternidade: “Estamos na orla de uma Nova Fronteira.”

Hoje, nesta passagem de 2013 para 2014, estamos também na orla de uma Nova Fronteira, mas é a fronteira que nos separa do inferno. Não vale a pena enganar quem nos lê, vendendo-lhe a moeda falsa de uma esperança enganadora. Dizia um anónimo que um optimista é alguém que pensa que o futuro é incerto. Ora nós não cremos que o futuro, tal como se desenha, com os dados que temos, seja um futuro incerto: é, pelo contrário, um futuro certo e, por sinal, bem negro. Porque é um futuro de pobreza, sem esperança.

Diz um provérbio que um homem a afogar-se se agarra a uma palha. Nós assistimos hoje a toda uma sociedade com História, a afogar-se sem ter uma palha a que se agarrar. A esperança, mesmo remota, costumava ser essa palha. Mas um governo de depredação e de pilhagem sem escrúpulos tem estado determinado a surripiar até essa pífia bóia de salvação: uma esperança, mesmo pouco fundamentada.

As pessoas, de tanto sofrerem, deixaram de acreditar. Um autor francês célebre observou um dia, com cinismo cauterizante, que o futuro já não era o que costumava ser. Ele parece, agora, simplesmente não existir. De há dois anos e meio para cá, assistimos à execução exemplar do que há de pior nos manuais da governação: a mentira, a falta de escrúpulos, a violência, a opressão, o empobrecimento programado, o enriquecimento escandaloso e obsceno de poucos.

Governar teve, quase sempre, má imprensa e má literatura. Já Voltaire, “gamin” pouco domesticável, observava que “em geral, a arte de governar consiste em tirar tanto dinheiro quanto possível a uma parte dos cidadãos, para o dar a outra parte” (em geral, tirar aos que já pouco têm, para dar aos que já têm demasiado). Kin Hubbard assanhava o tom assassino, quando dizia: “Governar é uma espécie de pilhagem legalizada.” E o grande Tolstoi, do alto da sua santa iconoclastia, gostava de não medir por aí além as palavras: “Governo é uma associação de homens que exercitam a violência sobre o resto de nós.” Foi assim no tempo dos czares e foi assim no tempo dos czares que vieram depois – mesmo aqueles que falavam em nome do povo.

Não vivemos num mundo em que falte o dinheiro: o que se passa é que há cada vez menos pessoas a terem a posse de uma fatia cada vez maior desse dinheiro (não por mérito, mas por manha maligna). Dizia Cervantes, no seu Don Quixote, que “só há duas famílias no mundo: os que têm muito e os que têm pouco.” No entanto, depois dele e por algum tempo, as coisas deixaram de ser assim: havia alguns que tinham muito, havia bastantes que tinham alguma coisa e havia também bastantes que tinham pouco. Os governos actuais andam, com eficácia, a destruir o grupo do meio – os bastantes que tinham alguma coisa – transferindo-os para o grupo dos que não tinham quase nada ou mesmo nada. Esta pobreza crescente tem sido causada, paradoxalmente, pelo muito dinheiro que há nas mãos de muito poucos! O dinheiro tem tomado de assalto todas as conquistas mais notáveis do século XX: trabalho, educação, saúde, recreio...

Dizia Cicero, qui s’y connaissait, que “não há fortaleza tão forte que o dinheiro não possa tomar de assalto.” Tudo se torna negócio, para quem é provido de dinheiro e desprovido de escrúpulos (nem precisa de ser provido de muita inteligência: ao contrário da crença em vigor, não é preciso ter muita inteligência para enriquecer – uma combinação bem doseada de astúcia e falta de escrúpulos é amplamente suficiente). O dinheiro permite todas as vitórias para uns poucos e todas as derrotas para os muitos mais. Tudo se torna negócio: a educação, a saúde, o bem-estar... O dinheiro toma conta de tudo, até da verdade, amordaçando-a ou pervertendo-a.

Arthur Balfour, mais tarde Lord Balfour, que foi primeiro ministro britânico, ao qual se deve a famosa “Declaração Balfour”, que está na origem da criação do Estado de Israel, não era peco a falar: as suas “tiradas” são famosas (por exemplo: “A lucidez de estilo de Asquith é positivamente uma desvantagem, quando ele não tem nada a dizer”) e uma delas rezava assim: “Nada deve impedir a verdade, salvo uma substancial soma de dinheiro.”

É isto que tem sido a bíblia e a medalha de toda a praga neoliberal que nos governa por esse mundo fora. Uma praga que se considera cristã, mas para quem o espírito do cristianismo é letra morta. Dizia o dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, com a ferina acutilância que o caracterizava, que “o cristianismo talvez fosse uma coisa boa, se alguma vez tivesse sido experimentado.” Infelizmente, o neoliberalismo que impera, infecta e destrói todo o tecido social é a negação mesma do espírito cristão.

A pobreza é um mal, não é um vício. Pode e deve ser combatida com energia e eficácia, sob pena de toda a sociedade ruir. Dizia alguém que a melhor maneira de ajudarmos os pobres é não nos tornarmos um deles. É essa realmente a via. Como? Não quero terminar esta crónica de fim de ano, em estado de negra negação. Há de facto uma via – e só uma: dar luta continuada e sem quartel à gente que nos governa – e não só em Portugal. Lutar, dizer não, não e não, até nos ouvirem: quer gostem, quer não gostem (e, seguramente, não vão gostar). Nós somos muitos e isto é uma força!

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Um inverno de quatro estações.

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