Transcreve-se uma crónica de Eugénio Lisboa, publicada no blogue "Livres Pensantes"(31/12/2013):
No dia 15 de Julho de 1960, por ocasião da Convenção do
Partido Democrático, J. F. Kennedy cunhou uma frase para a eternidade: “Estamos na orla de uma Nova Fronteira.”
Hoje, nesta passagem
de 2013 para 2014, estamos também na orla de uma Nova Fronteira, mas é a
fronteira que nos separa do inferno. Não vale a pena enganar quem nos lê,
vendendo-lhe a moeda falsa de uma esperança enganadora. Dizia um anónimo que um
optimista é alguém que pensa que o futuro é incerto. Ora nós não cremos que o
futuro, tal como se desenha, com os dados que temos, seja um futuro incerto: é,
pelo contrário, um futuro certo e, por sinal, bem negro. Porque é um futuro de
pobreza, sem esperança.
Diz um provérbio que um homem a afogar-se se agarra a uma
palha. Nós assistimos hoje a toda uma sociedade com História, a afogar-se sem
ter uma palha a que se agarrar. A esperança, mesmo remota, costumava ser essa
palha. Mas um governo de depredação e de pilhagem sem escrúpulos tem estado
determinado a surripiar até essa pífia bóia de salvação: uma esperança, mesmo
pouco fundamentada.
As pessoas, de tanto
sofrerem, deixaram de acreditar. Um autor francês célebre observou um dia, com
cinismo cauterizante, que o futuro já não era o que costumava ser. Ele parece,
agora, simplesmente não existir. De há dois anos e meio para cá, assistimos à
execução exemplar do que há de pior nos manuais da governação: a mentira, a
falta de escrúpulos, a violência, a opressão, o empobrecimento programado, o
enriquecimento escandaloso e obsceno de poucos.
Governar teve, quase sempre, má imprensa e má literatura. Já
Voltaire, “gamin” pouco domesticável, observava que “em geral, a arte de governar consiste em tirar tanto dinheiro
quanto possível a uma parte dos cidadãos, para o dar a outra parte” (em
geral, tirar aos que já pouco têm, para dar aos que já têm demasiado). Kin
Hubbard assanhava o tom assassino, quando dizia: “Governar é uma espécie de pilhagem legalizada.” E o grande
Tolstoi, do alto da sua santa iconoclastia, gostava de não medir por aí além as
palavras: “Governo é uma associação de
homens que exercitam a violência sobre o resto de nós.” Foi assim no tempo
dos czares e foi assim no tempo dos czares que vieram depois – mesmo aqueles
que falavam em nome do povo.
Não vivemos num mundo em que falte o dinheiro: o que se passa
é que há cada vez menos pessoas a terem a posse de uma fatia cada vez maior
desse dinheiro (não por mérito, mas por manha maligna). Dizia Cervantes, no seu
Don Quixote, que “só há duas famílias no mundo: os que têm
muito e os que têm pouco.” No entanto, depois dele e por algum tempo, as
coisas deixaram de ser assim: havia alguns que tinham muito, havia bastantes
que tinham alguma coisa e havia também bastantes que tinham pouco. Os governos
actuais andam, com eficácia, a destruir o grupo do meio – os bastantes que
tinham alguma coisa – transferindo-os para o grupo dos que não tinham quase
nada ou mesmo nada. Esta pobreza crescente tem sido causada, paradoxalmente,
pelo muito dinheiro que há nas mãos de muito poucos! O dinheiro tem tomado de
assalto todas as conquistas mais notáveis do século XX: trabalho, educação,
saúde, recreio...
Dizia Cicero, qui s’y connaissait, que “não há fortaleza tão forte que o dinheiro não possa tomar de assalto.”
Tudo se torna negócio, para quem é provido de dinheiro e desprovido de
escrúpulos (nem precisa de ser provido de muita inteligência: ao contrário da
crença em vigor, não é preciso ter muita inteligência para enriquecer – uma
combinação bem doseada de astúcia e falta de escrúpulos é amplamente
suficiente). O dinheiro permite todas as vitórias para uns poucos e todas as
derrotas para os muitos mais. Tudo se torna negócio: a educação, a saúde, o
bem-estar... O dinheiro toma conta de tudo, até da verdade, amordaçando-a ou
pervertendo-a.
Arthur Balfour, mais tarde Lord Balfour, que foi primeiro
ministro britânico, ao qual se deve a famosa “Declaração Balfour”, que está na
origem da criação do Estado de Israel, não era peco a falar: as suas “tiradas”
são famosas (por exemplo: “A lucidez de
estilo de Asquith é positivamente uma desvantagem, quando ele não tem nada a
dizer”) e uma delas rezava assim: “Nada
deve impedir a verdade, salvo uma substancial soma de dinheiro.”
É isto que tem sido a
bíblia e a medalha de toda a praga neoliberal que nos governa por esse mundo
fora. Uma praga que se considera cristã, mas para quem o espírito do
cristianismo é letra morta. Dizia o dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw,
com a ferina acutilância que o caracterizava, que “o cristianismo talvez fosse uma coisa boa, se alguma vez tivesse sido
experimentado.” Infelizmente, o neoliberalismo que impera, infecta e
destrói todo o tecido social é a negação mesma do espírito cristão.
A pobreza é um mal, não é um vício. Pode e deve ser combatida
com energia e eficácia, sob pena de toda a sociedade ruir. Dizia alguém que a
melhor maneira de ajudarmos os pobres é não nos tornarmos um deles. É essa
realmente a via. Como? Não quero terminar esta crónica de fim de ano, em estado
de negra negação. Há de facto uma via – e só uma: dar luta continuada e sem
quartel à gente que nos governa – e não só em Portugal. Lutar, dizer não, não e
não, até nos ouvirem: quer gostem, quer não gostem (e, seguramente, não vão
gostar). Nós somos muitos e isto é uma força!
Eugénio Lisboa
sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
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