A sigla ADN é hoje usada em vários
contextos. Ultrapassou as fronteiras da genética e da biologia molecular e é
vulgar ouvir-se em vários órgãos de comunicação social que fulano e sicrano têm
ADN, como se fosse possível a vida sem ele.
O ADN, sigla do ácido
desoxirribonucleico, molécula da hereditariedade, imprime iconicamente uma
dupla hélice no nosso olhar. É assim desde que Watson e Crick propuseram, em
1953, esse modelo helicoidal para a biomolécula dos genes. Como acontece com
tudo na vida, a forma estrutural tem em si mesma significado funcional. A
revolução científica que esta descoberta causou na biologia e na medicina, faz
com que ela se confunda com a descoberta da molécula ADN.
De facto, a substância ADN foi descoberta muito
antes. Em 1869, o suíço
Johann Friedrich Miescher (1844
– 1895) identificou uma nova substância ao analisar o conteúdo dos núcleos
celulares dos glóbulos brancos. Essa substância era ácida e continha na sua
composição fósforo, um elemento ausente nas proteínas. À nova substância, que
não tinha propriedades proteicas, Miescher deu o nome de nucleína.
Bioquímico alemão Johann Friedrich Miescher (1844 – 1895)
Note-se que esta descoberta é efectuada numa época rica em revoluções na Biologia: em 1859, Darwin publica "A Origem das Espécies"; em 1865, Schwann e Scheiden postulam a teoria celular; ainda em 1865, Mendel publica o seu artigo sobre a hereditariedade, apesar de o mesmo ter tido pouca divulgação ou consideração.
Há alguns factos curiosos ao redor
da descoberta do ADN e sobre o seu descobridor.
Miescher formou-se em medicina na
Universidade de Basileia. Contudo, uma surdez impediu-o de exercer medicina e
optou por seguir uma carreira científica, influenciado pelo seu tio, professor
de química fisiológica (hoje diríamos bioquímica) naquela universidade. A sua
incapacidade auditiva não o impediu de ser um investigador com uma visão
acutilante para os problemas científicos na sua área. De facto a sua descoberta
teve implicações na biologia, na genética, na medicina, muito além daquilo que
ele poderia suspeitar na época em que viveu.
Friedrich Miescher começou a sua carreira de
investigação no laboratório de Felix Hoppe-Seyler (1825 – 1895) um
dos mais prestigiados bioquímicos da época - identificou e caracterizou a
hemoglobina, entre outras proteínas. Situado no castelo de Tubinga, o
laboratório ocupava as instalações de uma antiga lavandaria. A investigação
nesse laboratório envolvia identificar e caracterizar o conteúdo proteico das
células. Pensava-se que, uma vez identificadas todas as proteínas, se poderia
compreender o funcionamento molecular da vida assim como a sua hereditariedade.
Miescher começou, assim, a explorar
as proteínas no citoplasma de glóbulos brancos que obtinha a partir do pus
retido em ligaduras de feridas provenientes de um hospital vizinho. Para que o
material biológico não se degradasse, mantinha a janela do laboratório aberta o
que fazia com que a temperatura de trabalho rondasse os 5 graus Celsius durante
o Inverno!
Apesar da sua persistência
metodológica, cedo percebeu que existiam muitas mais proteínas no citoplasma
dos glóbulos brancos do que aquelas que a técnicas analíticas de então
permitiam identificar. Influenciado pelo eventual papel do núcleo na
hereditariedade, uma ideia nova para a época, desenvolveu os protocolos
necessários para isolar esse organelo celular e proceder à análise da sua
composição.
É então que Miescher verifica que
está perante uma substância desconhecida à época, como já se disse. A estranheza
em o núcleo não ser constituído maioritariamente por proteínas, levou a que o Hoppe-Seyler duvidasse dos resultados e obrigasse Miescher e outros
investigadores a repetir a caracterização inúmeras vezes. Só em 1871, dois anos
após a descoberta, é que Miescher publicaria os seus resultados numa revista
científica.
Ao longo da sua carreira científica, Miescher convenceu-se de que a nucleína não poderia ser a molécula responsável pela transmissão de caracteres hereditários nem que estava envolvida na fecundação. Ademais, considerava que a nucleína deveria ser, devido ao seu enorme peso molecular, um repositório de matéria para a síntese de outras moléculas necessárias à vida.
A composição
aparentemente monótona da nucleína (mais tarde rebaptizada por ácido
desorribonucleico, ou ADN) contrastava com a diversidade incontável das
proteínas. E à falta de outras evidências experimentais, os genes não
poderiam ser feitos de uma substância tão pouco diversa, teriam de ser
constituídos por proteínas. Esta ideia persistiu durante mais de 70 anos, até a
meados da década de 40 do século XX, altura em que ficou demonstrada experimentalmente
que o ADN é a molécula dos genes.
António Piedade
5 comentários:
"muito aquém"? Muito além, deve querer dizer.
Obrigado pelo reparo. Tem razão.
Gostei do que li. Faço um reparo: 1871 e não 1971.
Obrigado pelo comentário e pelo reparo. Já reparei!
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