Texto, imperdível, de Teolinda Gersão, datado de 11/06/2012, que recebemos de Regina Gouveia:
Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português.
Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos,
façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que
já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática,
o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: no ano passado, quando se dizia
“ele está em casa”, “em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.
“O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos
“ela é bonita”. “Bonita” é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus,
a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane,
com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar, etc., conforme se precisava.
Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o
simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há
simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo
verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado
e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo
é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas).
0E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver
coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo
pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: “Algumas árvores secaram”,
“algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão
do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado, se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa.
Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de
“abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela?
Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa
dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática
do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos
exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto
em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que
me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de
adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico,
classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia,
meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto,
intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais,
implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões
assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões
só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha,
para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma,
para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado,
por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente
tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os
dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes
até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens,ou pedaços
de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e
inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também
são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que
estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que
é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem
sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é
toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos
tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas,
como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar
os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: “Ó João,
onde está a tua gramática?” Respondo:“Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.”
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).
Teolinda Gersão
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9 comentários:
São os resultados de décadas a "simplificar" o ensino para "lutar contra o abandono escolar" ou "criar o Homem Novo".
Bravo.
E um bravo aos senhores professores que se manifestam de forma massiva sempre que o assunto são vencimentos ou sistemas de avaliação mas que a tudo isto dizem nada (com a excepção honrosa de meia dúzia de professores, que os honra, mas não representa a classe).
Sabe que o vencimento é para comer ... o resto é só para falar. Comer é mais importante porque se não se come não se fala. Entendeu?
Caro Anónimo, quem assim pensa não tem uma Profissão, tem biscates.
Enganou-se tanto agora como na sua primeira intervenção. Não entendeu.
Temos de reconhecer que o meu colega anónimo (das 16:08) tem carradas de razão. Cortem o vencimento a todos os assalariados. Deixam de comer. Depois que fazem? Dedicam-se a defender causas de honra? O Senhor Teixeira é um lírio ou está a gozar.
O sr. Teixeira teria todo o gosto em ser lírio, mas de facto ainda é uma pessoa.
Não, não estou a gozar. Como qualquer pedreiro, trolha, electricista, engenheiro ou arquitecto lhe poderão dizer, o dia a dia de alguém que tem uma profissão implica defender que as coisas sejam realizadas de acordo com o melhor da nossa arte ou ciência. Não raras vezes com risco de ser despedido por não querer aldrabar a obra ou o projecto, qualquer que ele seja, de acordo com os desejos do patrão.
São todas estas pessoas flores, então. Mas de certeza que já salvaram as vidas ou os bens dos caros anónimos.
Cortem o vencimento aos trolhas, pedreiros e etc. Depois verão. Primus vivere...
O Pá, corta mas é o vencimento ao Senhor J. Teixeira. Só para ver o que ele fará quando as reservitas dos depósitos a prazo que tem de lado lhe acabarem. Só então se poderá contar com ele para as horríveis manifestações em que se reclama sobre o salário.
Para mim os anónimos são todos uns cobardolas. O Teixeira dá a cara.
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