domingo, 17 de fevereiro de 2013

AS SALAS DE CINEMA AGONIZANTES

Nova crónica da escritora Cristina Carvalho:


Sabe-se que, brevemente, vão fechar não sei quantas salas de cinema em todo o país Portugal.

É natural.

Fechariam com crise ou sem crise. A população cinéfila, antes muitos, já pouco sai de casa com intenção de ir ao cinema. Nas lojas, melhorou a qualidade dos sofás; os tecidos que os forram são grossos e espessos o suficiente para aguentar sem manchas e absorver as babas de quem adormece ao som de todos os Canhões de Navarone; as televisões são grandes, espalmadas, com muito boas colunas de som; os leitores de dêvêdês baratíssimos, os próprios dêvêdês oferecidos ao domingo com o jornal preferido, o dia está ventoso, a noite é de chuva, a lareira acende-se com as pinhas, gravetos e aparas comprados a peso de ouro lá no supermercado do bairro, mais as acendalhas e o fole que sopra, sopra, sopra sonhos de luxo e bem-estar e enquanto as brasas espevitam, a vida consome-se na contemplação das pequenas chamas que mal aquecem, o menino dorme lá na sua caminha e os pais, sossegados, vendo o filme na têvê, a mulher mais a lágrima a escorrer, que triste o África Minha, o pai desbravando as séries, são polícias e ladrões, médicos e charlatães e, se for Verão, é exactamente a mesma coisa, a diferença está apenas na t-shirt em vez do camisolão.

O tempo das idas ao cinema antecipadas pelo jantar fora em restaurante e a seguir o grande ritual cinéfio, terminou. As grandes salas de Lisboa, o Monumental, o São Jorge, o Éden, até mesmo o Condes foram, há muito, transformadas em minúsculas saletas com vinte assentos cada uma para render mais. O mistério das combinações de renda a espreitar por fora do melhor vestido, a costura das meias de seda ao correr da perna, a frescura do cheiro das águas-de-colónia das mães e das tias e das madrinhas aguardando em casa o regresso dos esposos com os bilhetes na carteira, já no vestíbulo, prontas a sair e a deixar o seu rasto de bem-estar domingueiro, tudo isso terminou há muito! E uma pessoa quase que nem via o filme, era tanta a ansiedade pelo intervalo que tardava, pela marcha nos corredores do foyer mais a garrafinha d’água das Pedras para aclimatar as fervuras, que o filme pouco interessava.

Tudo mudou.

Também nas salas de cinema se namorava muito. Ali no escurinho do cinema  eram maravilhosos encontros! As mãos que se cruzavam nos colos dos namorados, pernas acima, pernas abaixo, o ecrã todo turvo e mais um beijo e outro beijo, qual era a história? qual era a história? Ninguém se lembra! E para quê? Para quê tudo isso agora? Dos cento e cinquenta canais disponíveis na televisão, há setenta e dois só de filmes e mais filmes e também a internet e o youtube e todos os daunlôdes de todos os filmes do mundo, de hoje e de sempre pelo preço mais que simbólico do aluguer da caixinha preta, a dita box.

É que uma pessoa está muito mais à vontade! podes comer pipocas e batatas fritas sem receio do barulho,  podes ir à casa de banho quando é preciso sem esperar pelo intervalo, podes dar os beijos e abraços sem refrear qualquer ímpeto e nas melhores posições, interrompes o filme na altura certa, voltas com ele atrás e com ele para a frente, e à frente e atrás e atrás e à frente e as vezes que forem precisas e as vezes que te apetecer e agora em câmara lenta ou então muito depressa, mmmuuuuito depressa mesmo, com som, sem som, às claras ou às escuras.

Tudo muito bom e confortável e diferente! Bom, melhor que bom! Fantástico!

Eu nem sei é como é que ainda há uma sala ou outra a passar filmes!...

CRISTINA CARVALHO

4 comentários:

Anónimo disse...

não são somente as salas de cinema, é a sociabilidade em geral, as associações culturais e recreativas muitas centenárias estão a desaparecer, o mesmo para feiras sazonais que datam da medievalidade, os cafés, etc..

Cristina Carvalho disse...

Tudo muda...

Já dizia Heráclito, Camões e tantos outros que tais!

CC

Jorge Teixeira disse...

Há ainda outra coisa: é que, fora de Lisboa, só há salas de cinema Multiplex. Nestas salas o público que aprecia cinema não tem oferta -- só passam "block busters", desenhos animados estilo-Pixar e comédias de estilo escatológico (tendência inaugurada por Mad about Mary, American Pie e etc.) Nenhum destes géneros fazem o público que realmente aprecia cinema sair de casa para ir ao cinema.

Anónimo disse...

Ainda assim as salas de cinema tinham o seu encanto e de certo modo servia para esticar as pernas. Agora a TV muito, mas mesmo muito raramente passa algo de jeito e os dêvêdês jamais irão substituir esta realidade: o convivio com os amigos e conhecidos quando se saia de casa, nem que fosse para ir ao cinema....

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