Texto de Valter Hugo Mãe, recebido da nossa leitora Regina Gouveia:
(excertos de um texto de Valter Hugo Mãe,
publicado em Autobiografia
Imaginária | Valter Hugo Mãe | JL Jornal de Letras, Artes e Ideias | Ano XXII |
Nº 1095 | 19 de Setembro de 2012 e pode ser lido na
íntegra aqui
(...)A escola,
como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de
liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno,
honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso
ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se
tem vindo a tornar.
Nunca tive
exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e
tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me
sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o
Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida
melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora
na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática,
não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho
dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir
conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.
Os alunos nascem
diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir
do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores
versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a
caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta
minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver
tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os
discutisse comigo(...)
(...) Dá-me isto
agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu
próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má
gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos
pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como
pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos
miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a
casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.
Estragar os nossos
miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são
fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas
reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem
formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender
no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é
individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos
por natureza andam os destituídos de afeto.
As escolas não
podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser
reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou
trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do
entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os
exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que
não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a
suicidar-se. Odeia e odeia-se.
Valter Hugo Mãe
4 comentários:
EXCELENTE TEXTO!! NU CRU E ESCLARECEDOR.
Um texto áspero, requer lixa. O potencial do texto à reparo. Dignidade para além de expressão, arte é atitudelimpa.
Enquanto humilde professor, um grande e triplo obrigado:
A Valter Hugo Mãe (que nome bonito, sem "w" e tudo);
A Regina Gouveia;
Ao DRN.
Os professores resistem a ser instrumentos de poderes perversos, porque isso não é a parte menos importante de ser professor. O professor não é um subversivo, um revolucionário, um repressor, ditador, polícia, burocrata...é um pedagogo que está com os alunos nos bons e nos maus momentos, é um capitão, é o último a abandonar o navio se este se afundar. O Valter Hugo Mãe toca cirurgicamente na ferida: governos que odeiam os governados e professores que odeiam os alunos são anomalias a que é urgente acudir. Ninguém precisa disso, antes pelo contrário. E não devíamos consentir que governo algum semeasse o ódio ou sequer a dissensão entre pessoas e grupos, muito menos entre aqueles que se encontram hierarquicamente associados e devem a sua razão de ser, não ao dissídio, mas ao respeito mútuo, aos objetivos comuns e ao entendimento na partilha de um quotidiano, em grande parte, programado pelos mesmos governos.
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