quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Os professores



 Texto de Valter Hugo Mãe, recebido da nossa leitora Regina Gouveia:

(excertos de um texto de Valter Hugo Mãe, publicado em Autobiografia Imaginária | Valter Hugo Mãe | JL Jornal de Letras, Artes e Ideias | Ano XXII | Nº 1095 | 19 de Setembro de 2012  e pode ser lido na íntegra aqui

(...)A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.

Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.

Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo(...)

(...) Dá-me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.

Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto.

As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.

Valter Hugo Mãe

4 comentários:

Anónimo disse...

EXCELENTE TEXTO!! NU CRU E ESCLARECEDOR.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Um texto áspero, requer lixa. O potencial do texto à reparo. Dignidade para além de expressão, arte é atitudelimpa.

José Batista disse...

Enquanto humilde professor, um grande e triplo obrigado:

A Valter Hugo Mãe (que nome bonito, sem "w" e tudo);
A Regina Gouveia;
Ao DRN.

Carlos Ricardo Soares disse...

Os professores resistem a ser instrumentos de poderes perversos, porque isso não é a parte menos importante de ser professor. O professor não é um subversivo, um revolucionário, um repressor, ditador, polícia, burocrata...é um pedagogo que está com os alunos nos bons e nos maus momentos, é um capitão, é o último a abandonar o navio se este se afundar. O Valter Hugo Mãe toca cirurgicamente na ferida: governos que odeiam os governados e professores que odeiam os alunos são anomalias a que é urgente acudir. Ninguém precisa disso, antes pelo contrário. E não devíamos consentir que governo algum semeasse o ódio ou sequer a dissensão entre pessoas e grupos, muito menos entre aqueles que se encontram hierarquicamente associados e devem a sua razão de ser, não ao dissídio, mas ao respeito mútuo, aos objetivos comuns e ao entendimento na partilha de um quotidiano, em grande parte, programado pelos mesmos governos.

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