Novo texto de Ângelo Alves (na foto Ingeborg Bachmann):
«A Terra é azul e eu não vi Deus»
Yuri Gagarin, em 1962
O cosmonauta soviético, Alexis A. Leonov, foi o primeiro homem a flutuar no espaço, decorria o ano de 1965. Culminou num estrondoso sucesso a missão Voskhod 2, isto apesar de Leonov ter passado por um enorme susto: após dez minutos no vácuo, ao retornar à nave, o seu fato insuflou de tal modo que o cosmonauta não conseguiu entrar nela; só aliviando a pressão interior conseguiu.
Quando regressou à Terra, narrou desta forma o que viu:
A Terra está cercada por um invólucro cinza. Não é muito bonito, mas quando a gente olha para a Terra do lado do Sol, ela parece uma bola da árvore de natal de cor esmeralda. É interessante que o mar negro é realmente o mar mais escuro, enquanto que o báltico é cinzento e o mar das caraíbas é azul - esmeralda. Tudo depende da superfície do fundo e da profundidade.As observações de Leonov não deixaram indiferente a escritora e poetisa austríaca Ingeborg Bachmann. No seu romance Malina (de 1971), a esposa de Malina - uma mulher adúltera - tem, a páginas tantas, com o marido o seguinte diálogo:
…
A Terra era pequena, azul-clara, e tão tristemente só... nosso lar que deve ser defendido como uma relíquia santa. A Terra era absolutamente redonda. Eu acredito que nunca soube o que a palavra redonda significava até ver a Terra do espaço.
Para Ingeborg Bachmann, escritora céptica, apocalíptica, de um existencialismo acerbo, a Terra pouco mudou ao longo da história. Essa ténue mudança ocorreu no sentido da desumanização, da sombra, como o cosmonauta russo viu pela primeira vez o céu. Para descrever a desumanização da terra, Bachmann estabelece um paralelo, carregado de simbolismo, entre o cosmos e o homem. Como cita um personagem, num dos seus contos de “Trinta Anos”: “Não é costume do céu erguer a cabeça”; e, em “Malina”, a esposa chega a dizer profeticamente “… a poesia deixará de ser e os homens, os homens terão olhos negros, é de suas próprias mãos que virá a destruição, a peste…em breve será o fim”. O universo ficcional da escritora é constituído de relações tensas, rebeldia, agressividade, crimes, prostituição, e, quase sempre, tem como epílogo a tragédia. Influenciada por Thomas Bernhard, nomeadamente pela ideia de que para termos um mundo puro este tem que ser destruído - sem que restem vestígios - , a sua escrita perde em cor e ganha em qualidade.Malina: Então só raramente é que estou vivo para ti?
Eu: Mas tu vives. Vives mesmo sempre, e sobretudo também me dás provas disso. Que provas me dão os outros? Nenhumas.
Malina: “O céu é de um negro profundo.”
Eu: Podia descobrir-se a razão de ser dessa frase. Ela soa como se aquele que a escreveu estivesse vivo. É, no fim de contas, uma surpresa.
Malina: “O céu é de um negro profundo quase inconcebível. As estrelas são imensamente luminosas, mas não cintilam, por causa da ausência de atmosfera.”
Eu: O gosto da precisão!
Malina: “O sol é um disco ardente impresso no veludo negro do céu. Apoderou-se de mim a imensidão do espaço cósmico, essa vastidão inconcebível…”
Eu: Quem é esse místico?
Malina: Alexis Leonov, que esteve dez minutos no cosmos.
Eu: Nada mau. Mas veludo, pergunto-me se eu teria escolhido a palavra veludo. O homem é poeta nas horas vagas?
Malina: Não, pinta nos seus momentos perdidos. Hesitou por muito tempo se deveria ser pintor ou cosmonauta.
Eu: Hesitação bem natural. Mas, nesse caso, fala do cosmos como um romântico…
Malina: Os homens não mudam muito. Desde que uma coisa seja imensa, insondável, de um negro profundo, ei-los logo perturbados. Quer eles caminhem pela floresta, ou através do cosmos, erram com o seu próprio mistério no seio de um outro mistério.´
Eu: E isso passa à posteridade! Imagine-se só o desenvolvimento de tudo isso! Mais tarde, Leonov receberá uma datcha, cultivará rosas, e com o passar dos anos as pessoas sorrirão docemente ao ouvi-lo evocar a Voskhod 2. Avozinho Leonov, conte-nos alguma coisa desses primeiros minutos no espaço! Era uma vez uma lua onde toda a gente queria ir, e a lua encontrava-se muito distante e inóspita, mas um belo dia chegou Alexis, e eis que…
Malina: É bastante estranho que ele não tenha visto o Ural, porque foi no preciso momento em que ele foi derrubado ao sair da cabine.
Eu: Era fatal. É quase sempre assim no preciso momento em que se quer descobrir ou agarrar qualquer coisa, o Ural ou a palavra certa para o designar, um pensamento ou a as palavras para o exprimir, que se é derrubado. Exactamente como no caso do nosso avozinho, quando exploro esse espaço infinito que existe, por seu lado, em mim, há sempre alguma coisa que me escapa. Poucas coisas mudaram depois desse velho tempo dos primeiros passos no espaço.
Ingeborg Bachamann faleceu em Roma, em 1973, vítima de queimaduras provocadas por um incêndio no hotel onde estava hospedada. Este facto permanece envolto (também ele) até à data, em trevas, uma vez que a escritora desejava morrer em Roma e, especula-se que o incêndio ocorreu devido a um cigarro. Quem diria que esta autora, tão saturniana, acabasse por falecer após um fogo? O seu nome permanece, todavia, como um dos grandes da literatura austríaca da segunda metade do século vinte, a par do misantropo Thomas Bernhard e da controversa Elfriede Jelinek, de que eu tanto gosto. Quanto a A. Leonov continua a levar uma vida “sexfull” ou, talvez, “successfull”.
Deixo-vos com um dos poemas da “Invocação da Ursa Maior”, traduzido por João Barrento que mostra bem o cepticismo de Bachmann:
“Sombras Rosas Sombras”
Sob um céu estranho
sombras rosas
sombras
numa terra estranha
entre rosas e sombras
numa água estranha
a minha sombra
O povo do meu país vai por álea de jardim, em noite
de luar, e, como um Narciso nocturno, vê sua sombra espinhosa num fontanário,
ou num lago. Talvez isto mude para azul celeste, talvez chegue a ver o meu país
como Gagarin viu, do espaço, a Terra. Quando este “Tempo Atrasado”, este “Tempo
Aprazado” dá lugar a um Tempo mais humano? O coração dos homens-com-qualidades permanece
constantemente atrasado em relação ao seu tempo. Não, eu não me queimo!
Ângelo Alves
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