Face a tragédias e vitórias memoráveis muitos de nós já nos questionámos sobre quem faz a história. O livre-pensador responde que é o homem, o fatalista responde que há um Deus que guia os homens.
Liev Tolstói na sua epopeia
“Guerra e Paz” desmistifica todas as façanhas de Napoleão Bonaparte, inclusive
a batalha de Austerlitz, fazendo-o passar por um péssimo estratega militar.
Para este escritor russo e nada ortodoxo, no sentido religioso, entre Napoleão
e um vulgo não há diferença nenhuma, uma vez que ambos estão sujeitos a uma
Causa Invisível e incognoscível que conduz a humanidade para o paraíso. É da
actuação e soma de todas as forças que se origina a Força. Logo, o grande
historiador, aquele que procura as leis comuns a todos, não deve menosprezar
uma só força e centrar-se apenas nos estadistas, nos imperadores, etc. É neste
ponto que Tolstói compara o movimento da humanidade com a lei da gravitação de
Newton:
"Quando Newton formulou a lei da gravitação, não
disse que o Sol ou a Terra tinham a propriedade de se atraírem mutuamente,
disse que todos os corpos, do maior ao mais pequeno, se comportavam como se atraíssem
uns aos outros, isto é, deixando de lado o problema da causa do movimento dos
corpos, enunciou uma propriedade comum a todos, do infinitamente grande ao
infinitamente pequeno."
Apesar
de se falar somente em Newton, na lei da gravitação, todos os físicos sabem o
papel que Robert Hooke teve. Não foi Hooke quem avançou com a teoria que
todos os corpos caem para o centro da terra? Ora o historiador, neste caso de
ciência, não pode centrar-se apenas em Newton e na sua maçã, correndo o risco
de adulterar a história.
Uma
visão diferente da história da humanidade é a de Stendal. Quem leu “Vermelho E
Negro” e a “Cartuxa De Parma” sabe que para Stendal são os homens intrépidos, denodados e corajosos que acabam por triunfar e por realizar os seus desejos
(só não vencem a morte). Aqui o homem é possuidor do livre–arbítrio, e são os
seus feitos gloriosos que fazem com que ocupe um espaço de relevo na história.
Para Stendal Napoleão era um desses homens.
W. G. Sebald
em “Austerlitz” baralha tudo. Para ele a história e o tempo não existem. Tudo
está aí algures, como se o futuro já existisse e o passado nunca passasse.
Imagine, caro leitor, que se pensar agora no caso BPN, ele está aí a acontecer,
se pensar que o Senhor Franklim Alves laborou no BPN, ele está a laborar lá;
tudo isto está aí, assim como a boa fé do Senhor Relvas, a omissão nos
currículos de passagens comprometedoras e o mutismo do nosso Presidente da
República. Imagine que Lance Armstrong está a cortar a meta nos Campos Elísios
e, na América, aceita o uso frequente de substâncias para melhorar o seu
rendimento, isto em simultâneo. É estranho!
Vejamos
como Austerlitz nega a metáfora do tempo de Newton:
"O tempo, disse Austerlitz na sala de
astronomia de Greenwich, é de longe a mais artificial das nossas invenções e
ligá-lo aos planetas aos planetas que giram em torno dos seus eixos não é menos
arbitrário do que, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores ou no
tempo que uma pedra calcária leva a desintegrar-se, à parte o facto de o dia
solar pelo qual nos guiamos não fornecer medidas exactas, pelo que, para
obtermos a contagem do tempo, temos que inventar um sol médio imaginário com um
movimento de velocidade invariável e cuja órbita não se incline para o equador.
Se Newton pensasse, disse Austrelitz, e apontou pela janela para a curva que a
água desenha ao rodear a Ilha dos Cães com a última luz do dia, se Newton
realmente pensou que o tempo é uma corrente como a do Tamisa, então onde é que
fica a nascente do tempo e a que mar vai ele no fim desaguar? Todos os rios,
como sabemos, têm de ter margens de ambos os lados. Assim sendo onde estão as
margens do tempo? Quais seriam as suas qualidades específicas, correspondentes
talvez às da água que é fluida, algo pesada e transparente? Em que é que as
coisas mergulhadas no tempo diferem das que ele não afecta? Qual o significado
de mostrarmos as horas de luz e as de escuridão no mesmo círculo? Porque é que
o tempo de um lugar fica eternamente parado e se esfuma e num outro se
precipita? Não se poderá afirmar, disse Austerlitz, que o tempo ao longo dos
séculos e dos milénios tem sido assíncrono? Afinal, não foi assim há muito
tempo que ele se expandiu. E não tem sido a vida das pessoas em muitas partes
do mundo até hoje regida menos pelo tempo do que pelas condições atmosféricas,
logo, por uma grandeza não quantificável que desconhece a regularidade linear,
que não avança sempre em frente, antes se move em turbilhão, que é marcada por
estagnações e surtos, recorre sob a formas sempre diferentes e evolui para não
se sabe que direcção? O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há
pouco vigorava tanto nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos
continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole
temporal, como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os
doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de
infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse
Austrelitz, nunca possui qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e
muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa
basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a
um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à
chamada actualidade, na esperança, penso que eu hoje, disse Austerlitz, de que
o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à
chegada tudo como dantes ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos
do tempo existiriam simultaneamente, caso em que nada do que a história conta
seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer
no momento em que pensamos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco ou
nada animadora da eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto."
O pensamento
de Austerlitz é obscuro e contraditório. Pretende desligar o tempo da matéria e,
ao mesmo tempo, para justificar o “estar fora do tempo” socorre-se da matéria
afectiva e sentimental, da desgraça da humanidade. Todavia põe questões para as
quais ainda hoje não há resposta.
Esta
ideia de Sebald, de o tempo ser uma ficção, não é nova. Ele certamente, como
alemão, conheceu a escritora austríaca Ingeborg Bachmann e o seu romance
“Malina”. Leia-se este excerto:
"O tempo
não é “hoje”. Na verdade não existe tempo, podia ter ocorrido ontem tudo isto,
ou há longos anos, é possível que torne a acontecer, infatigável, e certas
coisas nem sequer ocorreram. Não há unidade de medida para este tempo onde
outros tempos se inserem, não existe medida possível para o não - tempo onde se
jogam coisas que nunca foram do tempo."
Para
mim o tempo, a história, pode de facto ser comparado a um rio, mas é o “rio de
trevas” de Fernando Assis Pacheco. Deixo-vos com este poema, dos mais
intemeratos, de “A Musa Irregular”:
“Morro
Do Aragão”
Encosto
a cabeça a um pneu/ acendo
o
cigarro/ passarão anos sobre esta
lembrança
entontecida.
Amanhã
dormirei? /
foi
agora que a morte/ o
sono
dentro da cabeça/
este
pneu sobre a lama.
Luzes
de Nambuangongo
ao
longe, amanhã estarei
deitado
no meu catre.
As
cartas enlouquecem / casa, pai!
Foi
agora que as luzes. O sono,
o pneu
/ o cigarro sujo.
Pacheco,
OK? A mão pesada
dentro
da bolso/ o sono
Sobre o
pneu.
Noite,
noite entontecida.
Passarão
anos, nascerão filhos
muito
antes que eu esqueça.
OK, OK
/ rio de trevas."
Ângelo Alves
Ângelo Alves
Sem comentários:
Enviar um comentário