Sabe-se que, brevemente, vão fechar não sei quantas salas de cinema em todo o país Portugal.
É natural.
Fechariam com crise ou sem crise. A população cinéfila, antes
muitos, já pouco sai de casa com intenção de ir ao cinema. Nas lojas, melhorou
a qualidade dos sofás; os tecidos que os forram são grossos e espessos o
suficiente para aguentar sem manchas e absorver as babas de quem adormece ao
som de todos os Canhões de Navarone; as televisões são grandes, espalmadas, com
muito boas colunas de som; os leitores de dêvêdês baratíssimos, os próprios
dêvêdês oferecidos ao domingo com o jornal preferido, o dia está ventoso, a
noite é de chuva, a lareira acende-se com as pinhas, gravetos e aparas
comprados a peso de ouro lá no supermercado do bairro, mais as acendalhas e o
fole que sopra, sopra, sopra sonhos de luxo e bem-estar e enquanto as brasas
espevitam, a vida consome-se na contemplação das pequenas chamas que mal
aquecem, o menino dorme lá na sua caminha e os pais, sossegados, vendo o filme
na têvê, a mulher mais a lágrima a escorrer, que triste o África Minha, o pai
desbravando as séries, são polícias e ladrões, médicos e charlatães e, se for
Verão, é exactamente a mesma coisa, a diferença está apenas na t-shirt em vez
do camisolão.
O tempo das idas ao cinema antecipadas pelo jantar fora em
restaurante e a seguir o grande ritual cinéfio, terminou. As grandes salas de
Lisboa, o Monumental, o São Jorge, o Éden, até mesmo o Condes foram, há muito,
transformadas em minúsculas saletas com vinte assentos cada uma para render
mais. O mistério das combinações de renda a espreitar por fora do melhor
vestido, a costura das meias de seda ao correr da perna, a frescura do cheiro
das águas-de-colónia das mães e das tias e das madrinhas aguardando em casa o
regresso dos esposos com os bilhetes na carteira, já no vestíbulo, prontas a
sair e a deixar o seu rasto de bem-estar domingueiro, tudo isso terminou há
muito! E uma pessoa quase que nem via o filme, era tanta a ansiedade pelo
intervalo que tardava, pela marcha nos corredores do foyer mais a garrafinha
d’água das Pedras para aclimatar as fervuras, que o filme pouco interessava.
Tudo mudou.
Também nas salas de cinema se namorava muito. Ali no escurinho do cinema eram maravilhosos encontros! As mãos que se
cruzavam nos colos dos namorados, pernas acima, pernas abaixo, o ecrã todo
turvo e mais um beijo e outro beijo, qual era a história? qual era a história?
Ninguém se lembra! E para quê? Para quê tudo isso agora? Dos cento e cinquenta
canais disponíveis na televisão, há setenta e dois só de filmes e mais filmes e
também a internet e o youtube e todos os daunlôdes de todos os
filmes do mundo, de hoje e de sempre pelo preço mais que simbólico do aluguer
da caixinha preta, a dita box.
É que uma pessoa está muito mais à vontade! podes comer pipocas
e batatas fritas sem receio do barulho, podes ir à casa de banho quando é preciso sem
esperar pelo intervalo, podes dar os beijos e abraços sem refrear qualquer
ímpeto e nas melhores posições, interrompes o filme na altura certa, voltas com
ele atrás e com ele para a frente, e à frente e atrás e atrás e à frente e as
vezes que forem precisas e as vezes que te apetecer e agora em câmara lenta ou
então muito depressa, mmmuuuuito depressa mesmo, com som, sem som, às claras ou
às escuras.
Tudo muito bom e confortável e diferente! Bom, melhor que
bom! Fantástico!
Eu nem sei é como é que ainda há uma sala ou outra a passar
filmes!...
CRISTINA CARVALHO
4 comentários:
não são somente as salas de cinema, é a sociabilidade em geral, as associações culturais e recreativas muitas centenárias estão a desaparecer, o mesmo para feiras sazonais que datam da medievalidade, os cafés, etc..
Tudo muda...
Já dizia Heráclito, Camões e tantos outros que tais!
CC
Há ainda outra coisa: é que, fora de Lisboa, só há salas de cinema Multiplex. Nestas salas o público que aprecia cinema não tem oferta -- só passam "block busters", desenhos animados estilo-Pixar e comédias de estilo escatológico (tendência inaugurada por Mad about Mary, American Pie e etc.) Nenhum destes géneros fazem o público que realmente aprecia cinema sair de casa para ir ao cinema.
Ainda assim as salas de cinema tinham o seu encanto e de certo modo servia para esticar as pernas. Agora a TV muito, mas mesmo muito raramente passa algo de jeito e os dêvêdês jamais irão substituir esta realidade: o convivio com os amigos e conhecidos quando se saia de casa, nem que fosse para ir ao cinema....
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