Texto do Professor Galopim de Carvalho.
Quem anda pela rua, nos supermercados, nos transportes públicos, ouve a toda a hora dizer que estamos a voltar aos tempos do antigamente.
- Mas há uma diferença substancial. - Dizia-me um reformado, meu vizinho de longa data.
- Agora vivemos em democracia, podemos falar e escrever o que nos vai no pensamento, sem receio de “ir dentro”. Não há tribunais plenários, nem presos políticos. Podemos fazer manifestações de rua e as forças policiais não perturbam os manifestantes e só actuam contra meia dúzia de provocadores a mando de quem a gente não sabe nem sonha. No “tempo da outra senhora” havia bufos por todo o lado. Não podias abrir a boca. Comias e calavas.
- Sim, mas olha que de cá se vai lá. Não te esqueças que a seguir a um período de total liberdade, como foi o do final da Monarquia e princípios da República, em que homens como o Eça de Queiroz, escreveram crónicas que podem retratar os dia de hoje, tivemos uma ditadura de quase quarenta anos. Foi o tempo dos “filhos-da-curta”, no dizer da t’Inácia.
Foi numa das minhas andanças pelos campos do Alto Alentejo, em campismo selvagem, na companhia de dois ou três amigos, feitos malteses, com umas mantas, uma panela de ferro, uma canadiana como tenda, emprestada pela sede da Ala de Évora da Mocidade Portuguesa, e mais meia dúzia de utensílios de uso nestas aventuras, que conheci a ti’Inácia, mulher do ti’Justo, hortelão no Monte das Três Irmãs.
O ti’ Justo, homem já sem forças para cumprir o que sempre fora o seu trabalho, deixava-nos apanhar as beldroegas que cresciam, viçosas e fartas, entre os regos da rega. Sentava-se numa cadeira de verga, à sombra de um limoeiro e quem agora fazia a lida da horta era a mulher, uns bons anitos mais nova e cheia de força.
Foi numa das várias vezes que ali fomos em busca das saborosas ervas, que conhecemos esta alentejana. O ti’ Justo falava pouco, mas a mulher era uma tagarela, uma “algarvia”, no dizer do marido. Vivia-se um tempo difícil, sobretudo, para os camponeses, sofrendo as agruras dos meses sem trabalho e sem pão para dar aos filhos, intimidados e perseguidos pela GNR e pela polícia política.
- São barrigadas de fome que só a gente é que sabe. Os fiados na venda do Germano são sempre muitos e o pessoal nem sempre tem dinheiro para os pagar. Comemos beldoregas, acelgas, labaças, cardinhos, espargos, cilarcas e o mais que o campo possa dar à gente. E são muitos os dias em que só pão e boletas nos entram na boca. Há alguns que chegam ao ponto de ir à cidade pedir com que dar de comer à família. Outros caçam coelhos ou lebres, o que calha, mesmo no defeso. Não importa. A gente arrisca-se. E não é com espingarda, é a cajado. Fazemos o que for preciso para arranjar pão para os filhos. Tudo menos roubar! – Frisou. – As jornas são uma miséria e, tirando a ceifa, o arranque da cortiça e a apanha da azeitona, ficamos aí de braços cruzados às atenças do Germano que é quem nos vai valendo. Somos mão-de-obra barata e sem direitos, sujeitos à exploração dos patrões. E os governantes estão do lado deles. Todos! – Reforçou – Não são só os de Lisboa. O Governador Civil e o Presidente da Câmara pertencem à mesma família. São escolhidos a dedo.
Calado, o Ti’ Justo ia dizendo que sim com a cabeça.
- À mais pequena palavra ou gesto a pedirmos justiça, – continuou, – aparece logo aí a Guarda ou a polícia à paisana. E não pede licença para levar dois ou três dos homens que lhes pareçam mais destemidos. Muitos ficam lá presos o tempo que eles quiserem, são espancados, torturados e alguns deles assassinados.
- “Filhos-da-curta”! – Exclamou, num suspiro de revolta contida e continuou. – Um parente nosso, chegou-nos aí todo amolgado. Mal podia andar. Os “filhos-da-curta” encheram-no de porrada que quase o iam matando. “Filhos-da-curta”! – Repetiu, uma vez mais, a terminar a conversa.
Era evidente que esta alentejana idosa nos anos de vida, mas bem madura na sua combatividade, estava por dentro das lutas dos trabalhadores contra os agrários, enquadradas pelo Partido Comunista.
Falava com desenvoltura das “comissões de rancho”, das “comissões de herdade” e da “praça de jorna”, local da aldeia ou dos montes onde homens e mulheres se reuniam para tratarem colectivamente dos salários, de outras reivindicações e das respostas a dar aos patrões, algumas vezes, na presença intimidatória da GNR. Entremeando os relatos que fazia, foram muitas as vezes que repetiu aquela expressão de desabafo.
Como mulher séria e de bem, não se permitia dizer aquela palavra começada por p, a que se segue um u, um t, e um a, na frente de pessoas com quem não tinha confiança. Aliás, nesse tempo, as mulheres que se tinham por bem educadas não proferiam essa palavra, nem mesmo no seio da família. Quando, por exemplo, acontecia terem que referir uma rapariga que se prostituísse, não diziam esse nome tão feio, diziam “rapariga da vida” ou “rapariga infeliz”. Só os homens e rapazes de condição mais grosseira falavam de putas.
Para a t’ Inácia, os “filhos-da-curta” eram, em especial, o Salazar, os pides e os GNRs que lhe prendiam os homens e todos os ricos que engordavam à custa da pobreza do povo.
Galopim de Carvalho
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3 comentários:
Belo texto, como outros que aqui têm sido escritos por Galopim de Carvalho. E muito revelador do que era o tempo e o Portugal de Salazar.
Em modesta homenagem ao professor Galopim de Carvalho da dedicação, a memória de outro tempo o Alto Alentejo.
Voz de escritor
Querer o tom é estar quem?!
Convenhamos, queira outrora.
Ah! Seria bom ler alguém...
Bem, é dialogar com Aurora!
Sabêmo-lo e a isto, vêem:
raires luz, exaltado dia!
E, da serana companhia em
cá, o ler saudade haveria?!
Veio de sobreidade o for,
destreza trazê-lho-ia asseio
formoso e letrado a certeza
deveras facto, queres amor
céu de humana natureza
da firmeza o bem, creio.
Professor Galopim de Carvalho;
Como caracterizaria a t’ Inácia a Lei Barreto?!
http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=410205
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