terça-feira, 23 de outubro de 2012

AS CIÊNCIAS DA TERRA NA IDADE MÉDIA (3)

Terceira parte do texto As ciências da terra na Idade Média, do Professor
Galopim de Carvalho. A primeira parte encontra-se aqui e a segunda aqui.

                                       Na corte de Afonso X (o Sábio) de Castela e Leão

Ao tempo dos nossos reis Sancho II e Afonso III e do rei de Castela e Leão, Afonso X (1221-1284), o Sábio ou o Astrólogo, a corte deste monarca foi uma autêntica academia científica no espaço mediterrâneo, tendo marcado um período excepcional no culto da sabedoria, conhecido por Renascença do século XIII.

Judeus, árabes e cristãos conviveram nesta corte em absoluta harmonia e respeito pela cultura e pela ciência. Este, que também foi o imperador eleito do Sacro Império Romano - Germânico (mas que não exerceu esse cargo), realizou a primeira reforma ortográfica do castelhano, língua que adoptou oficialmente, em substituição do latim.

A histórica escola de tradutores de Toledo, reunindo cristãos, judeus e muçulmanos, traduziu grande parte dos textos da antiguidade clássica, obras que foram consideradas as principais responsáveis pelo renascimento científico de toda a Europa medieval. Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, o dominicano alemão Albrecht von Bollstädt (1206-1280), ficou conhecido entre nós por Alberto, o Grande, ou Alberto Magno e, também, por Maître Aubert, ou simplesmente Maubert, o Doctor Universalis, como era citado.

Tendo dedicado muito do seu tempo em domínios da alquimia e estudado a filosofia de Aristóteles e a dos filósofos árabes, produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a coexistência pacífica da ciência e da religião, tendo sido particularmente eficaz na aplicação das ideias aristotélicas no pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do grande filósofo. Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações.

No propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX incumbiu Alberto dessa tarefa. Em resultado do seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a política do estagirita [1]  passaram a fazer parte da escolástica. Lembrado como o maior filósofo e teólogo europeu da Idade Média, foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo, em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia que realizou na sua qualidade de alquimista.

Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo chegado à dignidade de Bispo de Regensburgo (Ratisbona).

Do outro lado do Canal, considerado o mais admirável cientista da Idade Média, Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista inglês, foi pioneiro na estruturação do método experimental, como forma de validação do conhecimento científico. O seu papel nas ciências da Terra decorre da sua visão sobre a ciência em geral. O seu nome ficou ainda ligado à matemática (trabalhou na correcção do Calendário Juliano) e, principalmente, à óptica. Estudou em Oxford nesta Universidade, bem como na de Paris.

Frade franciscano, viveu um período onde o influxo de obras escritas dos filósofos gregos, vindas através das já citadas traduções, revolucionava a vida intelectual do ocidente europeu. Bastante influenciado por estes textos, foi um dos principais europeus do seu tempo a ensinar a filosofia de Aristóteles. Colocando ênfase considerável sobre os procedimentos empíricos, lutou contra as chamadas ideias inatas. Face a esta sua acção inovadora, ficou na história com o título de Doctor Mirabilis (Doutor Admirável, em latim).

Propondo novas metodologias de investigação científica, colocou em causa os métodos de ensino praticados por franciscanos e dominicanos, o que o tornou impopular perante as autoridades eclesiásticas.

Consciente de que a escolástica fora concebida como uma via para conciliar a razão com a fé, não deixou de salientar as virtudes desta disciplina medieval, mas apontou-lhe os vícios, em especial os que misturavam os dogmas da Igreja com a filosofia, defendendo a separação entre a teologia e o saber científico, numa atitude coincidente com a dos comentadores árabes de Aristóteles, entre os quais, Averróis.

Esta atitude de Bacon germinou mesmo no seio da Igreja e teve aí seguidores que defendiam a separação da filosofia da teologia, afirmando que esta não é uma ciência, uma vez que as suas deduções não assentam em dados concretos, observáveis e experimentáveis, mas em premissas sustentadas e, tantas vezes, impostas pela fé. Na medida desta nova atitude perante o conhecimento científico, as ideias sobre a origem, a história e a natureza da Terra começam a apontar o caminho que as afastou das crenças ancestrais e as conduziu às preocupações, em primeiro lugar, dos naturalistas e, mais tarde, dos geólogos.

Deve-se a Bacon a criação e divulgação do conceito de "leis da natureza", facto importante num período em que, como se disse, estavam ocorrendo modificações no pensamento filosófico, em geral, e na filosofia natural, em particular. Restrições censórias e perseguições movidas pela Ordem Franciscana que, em 1272, proibiu a divulgação dos seus livros, afectaram uma parte importante da sua criatividade intelectual. Esta sua dissidência face à hierarquia e a sua actividade nas práticas alquímicas (entre outras, descobriu a combinação perfeita da pólvora) levaram-no à prisão por mais de uma década. Contemporâneo de Bacon, o dominicano italiano Tomás de Aquino (1225-1274), distinto aluno de Alberto Magno e autor da influente obra Summa Theologica, ficou na história da filosofia e da teologia com o título de Doctor Communis ou Doctor Angelicus.

Considerado um dos principais expoentes da escolástica, foi o criador do Tomismo, a doutrina adoptada oficialmente pela Igreja Católica, que, sem deixar de valorizar o pensamento de Platão e o misticismo de Santo Agostinho, visou, sobretudo e uma vez mais, integrar o filosofia aristotélica nos textos bíblicos, criando uma outra, inspirada na fé, numa espécie de teologia científica.

Não irmanado com qualquer ordem religiosa, ao invés da grande maioria dos intelectuais da Idade Média ligados quer aos franciscanos, como Bacon, quer aos dominicanos, como Tomás de Aquino, o francês Jean Buridan (c.1300-1360), reitor da Universidade de Paris, foi um clérigo e filósofo liberto das amarras impostas pela religião o que lhe permitiu o avanço em domínios da ciência que marcaram a sua obra.

Como professor na mesma Universidade ao longo de uma vida, ensinou e escreveu sobre Lógica, Metafísica, Ética e Filosofia Natural numa metodologia e numa prática entendidas como seculares, isto é, distintas da teologia. Considerado o filósofo francês mais influente, no século XIV e nos dois ou três que se lhe seguiram, desenvolveu o conceito físico de impulso, dando, assim, o primeiro passo no sentido do moderno conceito de inércia, inexistente no pensamento de Aristóteles.

Com interesse na história do pensamento geológico, Buridan reformulou uma ideia vinda da Antiguidade, ao escrever: “Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará”. Uma outra afirmação sua, que demonstra ter compreendido a globalidade do ciclo de erosão, diz: “A erosão torna mais leves os continentes que, aplanados, tendem a erguer-se, e torna mais pesados os oceanos, pela deposição de sedimentos, que tendem a afundar-se”, o que, não obstante algum desconhecimento próprio da época, revela ter ele tido a percepção da isóstase.

Buridan falava, ainda, de ciclos na história da Terra com 120 milhões de anos, uma ousadia face às ideias tradicionais impostas pelas Escrituras Sagradas, o que mostra que tinha a percepção da imensidão do tempo geológico. Noutro plano, dizia ele que os movimentos dos céus estão submetidos às mesmas leis dos movimentos dos corpos na Terra. Para ele havia uma única mecânica que regia todos os corpos, desde a esfera do Sol ao pião que se põe a rodopiar.

Alvo de uma campanha encorajada por Roma e concretizada por partidários do franciscano e escolástico inglês, a obra escrita de Buridan foi proibida pela Igreja Católica e colocada no famigerado Index Librorum Prohibitorum, promulgado pelo Papa Paulo IV, em 1559, com uma versão revista e autorizada pelo Concílio de Trento, em 1563.

[Designação que era dada a Aristóteles pelo facto de ser natural à antiga cidade de Estagira (hoje Stavro), na Macedónia]

Galopim de Carvalho

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

O tema ciências da terra demostra uma conquista multidisciplinar do conhecimento. Agradeço ao professor Galopim de Carvalho o texto.


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