sábado, 20 de outubro de 2012

AS CIÊNCIAS DA TERRA NA IDADE MÉDIA (2)

Continuação de texto anterior.

O alquimistaPintura do flamengo David Teniers, o Novo (1610-1690)

Um campo do conhecimento medieval com pontes de aproximação às ciências da Terra foi a alquimia, entendida como uma corrente, a um tempo filosófica e experimental, que combinou elementos de química, metalurgia, antropologia, medicina, botânica, filosofia, matemática, astrologia, misticismo, religião e magia.

Tanto a química como a metalurgia dos alquimistas tinham os minerais entre os produtos usados nas suas investigações e daí o esboço se uma disciplina - a mineralogia - que, só séculos mais tarde, conquistou o estatuto de ciência. Surgidos no extremo Oriente, o pensamento e a prática que conduziram à alquimia, chegaram à Europa através dos árabes, após a queda do Império Romano do Ocidente.

O termo é a tradução do árabe al kimia, expressão cujas raízes ainda são tema de discussão. A alquimia desenvolveu-se depois, na Mesopotâmia, no Egipto, com destaque para a cidade de Alexandria, no mundo Islâmico, na Grécia, em Roma, e no resto da Europa. Muito se tem escrito sobre os alquimistas e a “pedra filosofal” necessária à produção de ouro a partir de metais vulgares como o cobre, o chumbo, o estanho, o ferro e outros, considerados inferiores.

Outro tema de interesse de muitos deles foi a procura do “elixir da longa vida”, tido por uma panaceia universal que curaria todas as enfermidades e daria vida longa àqueles que o ingerissem. Muito se tem escrito, ainda, sobre outros domínios da alquimia ligados à filosofia, à astrologia, à religião, ao misticismo e à magia, aspectos associados à ideia de “Idade das Trevas”, expressão muitas vezes atribuída à “Idade Média”.

Em simultâneo com estas actividades, que nada tinham de científicas, há que realçar o seu carácter precursor da ciência experimental, nomeadamente a química, a mineralogia e a metalurgia, manipulando minerais e outros produtos químicos no propósito de obter novas substâncias.

Muitos alquimistas foram julgados pela Inquisição e condenados à fogueira por alegado pacto com Santanás. Durante muito tempo, o enxofre, material usado pelos alquimistas, foi associado ao Diabo. Entre os procedimentos que esta prática nos legou e ainda em uso nos laboratórios do presente, contam-se o aquecimento à chama e em banho-maria, a destilação, a combustão, e a evaporação.

Uns, mais, outros, menos, os alquimistas tiveram papel importante na construção do vasto e complexo edifício do conhecimento químico e mineralógico que temos ao nosso dispor. O legado que nos deixaram é algo que lhes devemos e muito.

Na Pérsia, Avicena (980-1037) foi um deles e um dos mais distintos. Médico, filósofo, jurista e alquimista de grande ecletismo noutros saberes, é considerado um dos pilares fundamentais da filosofia islâmica e uma das grandes figuras do pensamento universal. A sua cultura foi enciclopédica, dominando campos como os da astronomia, geologia, mineralogia, química, física (com destaque para a descoberta da capilaridade), geometria, gramática, jurisprudência e teologia. Advogando a unidade da filosofia, Avicena estudou profundamente Platão e Aristóteles e procurou conciliar as respectivas doutrinas.

A sua influência filosófica na Europa oriental não foi duradoura devido à oposição dos teólogos cristãos ortodoxos. Pelo contrário, foi decisivo no ocidente europeu, no que diz respeito à difusão do pensamento aristotélico nos séculos XII e XIII, tendo influenciado filósofos como Alberto Magno e Tomás de Aquino, que nutriam grande admiração por ele. Avicena deixou-nos perto de 270 obras escritas que cobrem a vastidão do seu saber enciclopédico, com grande destaque para a medicina e a farmacêutica.

O seu tratado sobre as pedras, De Lapidibus, já distinguia “terras”, “pedras”, “minerais fusíveis e sulfurosos”, “metais” e “sais”, com base nas características externas directamente observáveis (cor, forma e brilho) e nas propriedades físicas determináveis, entre as quais a fusibilidade. Esta classificação é considerada a primeira sistemática dos objectos do “Reino Mineral”, numa época em que não se fazia distinção entre minerais e rochas. Nessa época dava-se o nome de terra aos minerais e rochas decompostos e/ou desagregados pelos agentes atmosféricos, de aspecto mais ou menos arenoso (terroso) e pulverulento (barrento).

É na manutenção deste conceito que nós, com toda a propriedade, chamamos “terra” à fracção mineral, desagregada, do solo e, até, ao próprio solo. É ainda nesta tradição que se chamava “terra de infusórios” ao diatomito, “terra fulónica” à bentonite e terra rossa à argila vermelha residual da dissolução dos calcários, no modelado cársico. Pela mesma razão, os franceses usam terre e os ingleses, earth, para se referiram ao barro.

Em França, bispo de Rennes e mestre em Angers, registou o conhecimento dos minerais no seu “De Gemmis”. Escrito entre 1061 e 1081, é o mais antigo lapidário conhecido, de cujo manuscrito existem mais de cem cópias em diversas línguas e de que há catorze edições impressas entre 1511 e 1740. Os lapidários são pequenos livros manuscritos ou impressos, onde, entre outros, estão registados os conhecimentos de mineralogia acumulados durante os séculos XI a XVII. No geral, apresentam os minerais e outras pedras por ordem alfabética, com destaque para as suas “virtudes” medicinais e mágicas; são, por isso, considerados, por alguns estudiosos, como manuais de medicina e magia.

Das cerca de seis dezenas de pedras referidas no lapidário de Avicena, distribuídas por cinco grupos, muitas são puras fantasias e apenas pouco mais de vinte correspondem a minerais, entre os quais muitas gemas, como adamans (diamante), achates (ágatas), crystalus (quartzo hialino), selenites, topazius (topázio), carbunculus (rubi, espinela vermelha e granada vermelha), smaragdos (esmeralda) e, ainda, saphirus, nome que referia, não a safira que hoje conhecemos como uma variedade gema de corindo, mas sim o lápis-lazúli, então com aquele nome e considerada a mais preciosa e de maiores virtudes medicinais e espirituais, dada a cor azul forte, celestial.

Bem perto de nós, nascido em Córdova, então território moçulmano, viveu o grande filósofo de origem árabe, Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averróis (distorção latina do seu cognome árabe). A Andaluzia era, então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade, e aí teve lugar um movimento intelectual notável que acabou por ser aniquilado pela reconquista cristã. Muitos dos textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então, foram ali traduzidos.

Durante a última metade da Idade Média, mais de quatro séculos, o árabe foi a língua dominante na filosofia e na ciência embrionária europeias. Embora não tenha abordado temas directamente relacionados com as ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico e da sua independência relativamente aos dogmas da Igreja, deram sustentáculo ao avanço, tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas e, mais tarde, por geólogos.

Ao afirmar que, “com excepção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da razão”, este muçulmano ibérico deve ser considerado um precursor do pensamento científico e, neste sentido, a sua influência foi grande e decisiva na evolução da ciência, em geral. Seguidor do aristotelismo, que soube fundir com uma parcela de platonismo, Averróis afirmava que, a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite pelo povo, e da verdade mística da fé defendida e propalada pelos teólogos, há a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as outras. Num tempo em que a teologia dominava sobre a filosofia natural, as suas ideias alastraram entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris, criando uma corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas, oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia uma única verdade, a dos santos evangelhos.

Para Averróis, uma dada afirmação pode ser teologicamente verdadeira e filosoficamente (cientificamente) falsa e vice-versa. Este, que foi o mais afamado pensador islâmico da Idade Média, viveu muito à frente do seu tempo, abrindo o caminho para o Renascimento e influenciando, significativamente, a filosofia europeia. Intelectual de grande ecletismo, Averróis foi médico, astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”.

Durante parte da sua vida, Averróis contou com a protecção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur que, na mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também por ser condenada pela Igreja Católica.

(Continua)

Galopim de Carvalho

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