Mensalão: Trechos do voto ministro Celso de Mello em sessão plenária de 01/10/2012
Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos
delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em
julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que
culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e
executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e
irreversíveis danos ao princípio ético-jurídico da probidade
administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função
pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema
financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da
ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela
jurídica do ordenamento penal.
Quero registrar, neste ponto, Senhor Presidente, tal como salientei em
voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário, que o ato de
corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder e da ordem
jurídica, cuja observância se impõe a todos os cidadãos desta República
que não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa
corromper.
Quem transgride tais mandamentos, não importando a
sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou
governados, expõe-se à severidade das leis penais e, por tais atos, o
corruptor e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da
lei.
Este processo criminal revela a face sombria daqueles que,
no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da
transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o
exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma
função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de
desígnios pessoais.
Fácil constatar, portanto, considerados os
diversos elementos legitimamente produzidos nestes autos e claramente
demonstrados pelo eminente Relator, que a conduta dos réus, notadamente
daqueles que ostentam ou ostentaram funções de governo, não importando
se no Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculou o próprio
espírito republicano.
Em assuntos de Estado e de Governo, nem o
cinismo, nem o pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o
oportunismo podem justificar, quer juridicamente, quer moralmente, quer
institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção parlamentar ou
as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder Executivo ou de
agremiações partidárias.
Extremamente precisa a observação,
sempre erudita, do Professor Celso Lafer, quando, ao discorrer sobre o
espírito republicano, acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio
que explica a dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a
faz durar e prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer
que a motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (...) pela
virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém
poderá viver com dignidade numa comunidade política corrompida”.
É por isso, Senhores Ministros, que a concepção republicana de poder
mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática governamental
tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado patrimonial.
Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor Presidente,
tais como se qualificam aqueles consagrados nos princípios da
transparência, da igualdade, da moralidade e da impessoalidade, o
sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes
destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder
governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos
postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o,
assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado,
vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas,
antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer
conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e
partidárias.
O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do
Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio
benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.
A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela praticada no
Parlamento da República, evidencia-se pelas múltiplas consequências que
dela decorrem, tanto aquelas que se projetam no plano da criminalidade
oficial quanto as que se revelam na esfera civil (afinal, o ato de
corrupção traduz um gesto de improbidade administrativa) e, também, no
âmbito político-institucional, na medida em que a percepção de vantagens
indevidas representa um ilícito constitucional, pois, segundo prescreve
o art. 55, § 1º, da Constituição, a percepção de vantagens indevidas
revela um ato atentatório ao decoro parlamentar, apto, por si só, a
legitimar a perda do mandato legislativo, independentemente de prévia
condenação criminal.
A ordem jurídica, Senhor Presidente, não
pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional –
ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam
eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos e reprováveis
transgressões criminosas, no desempenho da elevada função de
representação política do Povo brasileiro.
Sabemos todos que o
cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por
administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes
incorruptíveis.
O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.
A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos que
importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato que
assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a exigir, por
isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dos dogmas
essenciais da República, a repulsa por parte do Estado, tanto mais se se
considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos, não só o poder de
representação política e a competência para legislar, mas, também, o
mandato para fiscalizar os órgãos e agentes dos demais Poderes.
Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria Constituição da
República, em face de que prescreve o seu art. 55, § 1º, e a legislação
penal.
Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a
aceitação criminosa de suborno, culmina por atingir, injustamente, a
própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo,
residindo,nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento
constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir,
da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja – que se haja
mostrado indigno do desempenho da magna função de representar o Povo, de
formular a legislação da República e de controlar as instâncias
governamentais do poder.
Importante destacar, Senhor Presidente, as gravíssimas consequências
que resultam do ato indigno (e criminoso) do parlamentar que
comprovadamente vende o seu voto e que também comercializa a sua atuação
legislativa em troca de dinheiro ou de outras indevidas vantagens. A corrupção deforma o sentido republicano de prática política,
compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à
própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições,
compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as
da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento
do País, além de afetar o próprio princípio democrático.
Daí
os importantes compromissos internacionais que o Brasil assumiu em
relação ao combate à corrupção, como o evidencia a subscrição, por nosso
País, da Convenção Interamericana contra a Corrupção (celebrada na
Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações Unidas (celebrada em
Mérida, no México, em 2003).
As razões determinantes da
celebração dessas convenções internacionais (uma, de caráter regional, e
outra, de projeção global) residem, basicamente, na preocupação da
comunidade internacional com a extrema gravidade dos problemas e das
consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e a
segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece as
instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, além de
comprometer a própria sustentabilidade do Estado democrático de direito,
considerados os vínculos entre a corrupção e outras modalidades de
delinquência, com particular referência para a criminalidade organizada,
a delinquência governamental e a lavagem de dinheiro.
Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à
dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso
Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e
implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de
fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no
Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o
rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e
ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema
constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade,
conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de
legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a
prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos
desta Nação.
Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela
as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse
gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de
parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente
comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis
criminais do País, a atuação desses marginais do Poder."
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2 comentários:
Pobre país este... A esquizofrenia é imanente à sociedade capitalista. Logo, este ostracismo a que está votada a saúde mental em Portugal é criminoso...
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