segunda-feira, 8 de outubro de 2012

História Prodigiosa de Portugal

Conheço o Prof. Joaquim Fernandes desde 1993. Acompanho de perto a sua atividade intelectual desde essa altura, com natural interesse pelas problemáticas do esotérico, do avistamento OVNI, por tanto mais. Infelizmente, creio que a sua imagem ficou demasiado colocada a essas eventuais questões mais fantasiosas. E escrevo infelizmente porque a convivência e a sempre alegre disponibilidade e entusiasmo com que aceitou projetos e desafios sugeridos pela minha pessoa permitiram-me, ao longos dos anos, conhecer um investigador e um homem de primeira água que é muito mais que um notável entusiasta por tais ambientes intelectuais e científicos. É esta, portanto, a minha declaração de interesses: mais do que impulsionar a provocação e consequente publicação de uma sua obra, sou, sobretudo, amigo do Prof. Joaquim Fernandes.

Sempre achei que as invulgares qualidades do mesmo ao nível da investigação jornalística e histórica podiam ser uma preciosa base para apresentar ao mundo literário uma outra História de Portugal. Uma História de Portugal, como o próprio já o afirmou, mais subterrânea. Aquela que está perdida no pó dos arquivos dos jornais, das bibliotecas. Uma outra História de Portugal que revele e comprove de uma maneira implacável este estranho e perigoso hábito de deixarmos os destinos da nossa Nação nas mãos de outros ou, pelo menos, na subjugação às leis dos outros... coisa tão contemporânea, parece-me! E estes outros são, geralmente, pouco palpáveis, pouco fiáveis, pouco tanta coisa! 

Na obra História Prodigiosa de Portugal: Mitos e Maravilhas, Joaquim Fernandes encontrou preciosos documentos que apresentam e colocam o raciocínio e tomada de decisões políticas dos líderes do nosso país ao longo de vários séculos (este primeiro volume estende-se até ao final do século XVIII, aguardando-se um segundo volume que irá até aos nossos dias), uma enorme narrativa tão deliciosa como digna dos maiores espantos para o bom senso do comum dos mortais; uma parada de inacreditáveis estórias e personagens que são absolutamente desconhecidos do grande público, de grande parte da chamada cultura geral do povo... eis alguns delirantes exemplos:

- o Imperador Clarimundo, de especial extração genética e sobrehumana estirpe, putativo progenitor da dinastia afonsina e que justificaria a primazia e excelência do nosso país;
- o voador "arcanjo" cujo braço armado saiu em defesa de D. Afonso Henriques na conquista de Santarém e deu origem à Ordem Militar de S. Miguel da Ala;
- S. Frei Gil, o varão estudante que, ao tempo de D. Afonso Henriques, rumando à Universidade de Paris, vendeu a alma ao grão-mestre dos demónios, conseguindo reaver o diabólico contrato;
- o prestimoso exército de moscas que impediu que o corpo de S. Narciso, português sepultado em Girona, fosse saqueado pela tropas francesas e sicilianas.
- a súbita neblina que invadiu o campo de batalha do Salado, em 1340, quando os soberanos português e castelhano se debatiam em frente comum contra os mouros.
- o rei D. Duarte, ao ser coroado em 1433, aceitou o adiamento da entronização por conselho do astrólogo régio mestre Abraaão Guedelha, por causa da configuração desfavorável dos astros;
- o escritor André de Resende acreditava em seres fabulosos aquáticos e que em Tróia, diante de Setúbal, havia salgadeiras onde se conservavam tritões e sereias que se pescavam naquelas águas;
- o malogrado D. Sebastião viu no grande cometa de 1577 o sinal de partida para a sua funesta campanha africanca consumada pelo desastre de Alcácer Quibir;
- o extraordinário caranguejo que devolveu o crucifixo de madeira a S. Francisco Xavier que o havia perdido nas águas profundas do Índico após ter feito serenar uma terrível tempestade;
- o sapateiro Simão, à época de D. Sebastião, na esteira de Bandarra, teria sido membro do Conselho Régio, profeta de Corte e analfabeto, sendo ouvido e respeitado pelas elites dirigentes;
 - a "epidemia" de religiosas e beatas grávidas, no decurso do século XVII, alegando trazer em si o "salvador do Mundo", numa espécie de "parto místico" que tomou proporções histéricas;
- o soldado António Rodrigues que "curava pela palavra" os pacientes do Exército português e recebia soldo vitalício do Estado, segundo determinação do rei D.João IV;
- o falhado atentado contra D. João IV, protagonizado em 1647 por Domingos Leite, português a soldo de Castela/Espanha, não consumada por uma "visão" súbita induzida na mente do traidor;
- a espantosa "vidente de Lisboa", em finais do século XVII, dotada com uma renda vitalícia do rei de Portugal, e cujos olhos viam água no solo e os orgãos no interior do corpo dos pacientes que a ela recorriam;
- o abominável feitiço feito de excrementos humanos de que foi alvo o rei D. João V, por parte de um grupo de mulheres, aristocratas e mulheres de virtude, envolvidas em negócios de alcova conventuais;
- a derradeira reencarnação de D.Sebastião acontecida em Lisboa, em 1813, na figura de António José Dias de Aguiar, que teve sonhos reveladores e acabou detido pela Polícia em burlesca indumentária...

e muitos, muitos mais.

Não há, nesta obra, uma tentativa de ser parcial, de ser condescendente, de ser cúmplice deste nosso outro perfil enquanto nação. Joaquim Fernandes meramente expõem os factos, apresenta-nos a enorme galeria da sua investigação. Foi aquilo. Foi assim que foi interpretado naquela altura. É, por isso, intelectualmente honesto e francamente apelativo naquilo que nos sugere: fomos e agimos assim, sabiam? E, sobretudo, isto do quem sais aos seus não degenera é, se calhar, uma tragédia coletiva que todos nós (povo, políticos, pobres e ricos, poderosos e vazios de qualquer poder) carregamos. Os céus prometeram-nos sempre tanto e, já que estamos com provérbios, o fia-te na Virgem e não corras foi mesmo o supremo conselho e caminho que deveríamos ter aprendido e realizado!

4 comentários:

joão boaventura disse...

Caro Miguel Gojnçalves

Pelos exemplos curiosos que cita na obra do nosso comum amigo Professor Joaquim Fernandes, recorda a velha revista francesa La France Pittoresque, o que permitirá antecipar que a referência saída do prelo constituirá, indubitavelmente, uma leitura agradável e prazenteira.

Cordialmente

Cordeialmente

José Batista disse...

Já agora, também há um livro extraordinário sobre "As Origens de Portugal, História contada a uma criança".

Acabei a releitura desse livro maravilhoso que, há uma dúzia de anos ofereci aos meus filhos. Então, liam-no eles, de dia, e li-o eu, ao mesmo tempo, depois de eles se deitarem. Uma preciosidade.
Escreveu-o e ilustrou-o Rómulo de Carvalho para um filho quando ele tinha pouca idade.

Eu creio que qualquer criança de oito ou nove anos que saiba ler gostaria de ler aquele livro e aprendia lições de História e de cidadanina absolutamente exemplares.

Mas nós, os portugueses, não gostamos de livros. Mesmo que sejam muito bons. E "nossos". E facílimos de ler.

Alguns até preferem a opacidade do "eduquês" e da "astrologia", os quais se equivalem em termos de rigor e qualidade, sendo que a segunda leva vantagem por ter muito mais pessoas a acreditar.

José Batista disse...

No comentário que fiz anteriormente, no segundo parágrafo, a seguir a "há uma dúzia de anos" devia ter sido aposta uma vírgula. Fica a correção.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Entre outras, a história de maravilhas e mitos: Dionísio, o manco e Hipólito; haveria da (in)crível ou, credível capacidade a literatura.

Quem poupa aventura, abastecida alma.

PARA UMA HISTÓRIA DA MINERALOGIA, NUMA CONVERSA FICCIONADA DO AUTOR COM D. JOÃO III

Por A. Galopim de Carvalho (Do meu livro Conversas com os Reis de Portugal - Histórias da Terra e da Vida , Ancora Editora, 2013) - Soube q...