Conheço o Prof. Joaquim Fernandes desde 1993. Acompanho de perto a sua atividade intelectual desde essa altura, com natural interesse pelas problemáticas do esotérico, do avistamento OVNI, por tanto mais. Infelizmente, creio que a sua imagem ficou demasiado colocada a essas eventuais questões mais fantasiosas. E escrevo infelizmente porque a convivência e a sempre alegre disponibilidade e entusiasmo com que aceitou projetos e desafios sugeridos pela minha pessoa permitiram-me, ao longos dos anos, conhecer um investigador e um homem de primeira água que é muito mais que um notável entusiasta por tais ambientes intelectuais e científicos. É esta, portanto, a minha declaração de interesses: mais do que impulsionar a provocação e consequente publicação de uma sua obra, sou, sobretudo, amigo do Prof. Joaquim Fernandes.
Sempre achei que as invulgares qualidades do mesmo ao nível da investigação jornalística e histórica podiam ser uma preciosa base para apresentar ao mundo literário uma outra História de Portugal. Uma História de Portugal, como o próprio já o afirmou, mais subterrânea. Aquela que está perdida no pó dos arquivos dos jornais, das bibliotecas. Uma outra História de Portugal que revele e comprove de uma maneira implacável este estranho e perigoso hábito de deixarmos os destinos da nossa Nação nas mãos de outros ou, pelo menos, na subjugação às leis dos outros... coisa tão contemporânea, parece-me! E estes outros são, geralmente, pouco palpáveis, pouco fiáveis, pouco tanta coisa!
Na obra História Prodigiosa de Portugal: Mitos e Maravilhas, Joaquim Fernandes encontrou preciosos documentos que apresentam e colocam o raciocínio e tomada de decisões políticas dos líderes do nosso país ao longo de vários séculos (este primeiro volume estende-se até ao final do século XVIII, aguardando-se um segundo volume que irá até aos nossos dias), uma enorme narrativa tão deliciosa como digna dos maiores espantos para o bom senso do comum dos mortais; uma parada de inacreditáveis estórias e personagens que são absolutamente desconhecidos do grande público, de grande parte da chamada cultura geral do povo... eis alguns delirantes exemplos:
- o voador "arcanjo" cujo braço armado saiu em defesa de D. Afonso Henriques na conquista de Santarém e deu origem à Ordem Militar de S. Miguel da Ala;
- S. Frei Gil, o varão estudante que, ao tempo de D. Afonso Henriques, rumando à Universidade de Paris, vendeu a alma ao grão-mestre dos demónios, conseguindo reaver o diabólico contrato;
- o prestimoso exército de moscas que impediu que o corpo de S. Narciso, português sepultado em Girona, fosse saqueado pela tropas francesas e sicilianas.
- a súbita neblina que invadiu o campo de batalha do Salado, em 1340, quando os soberanos português e castelhano se debatiam em frente comum contra os mouros.
- o rei D. Duarte, ao ser coroado em 1433, aceitou o adiamento da entronização por conselho do astrólogo régio mestre Abraaão Guedelha, por causa da configuração desfavorável dos astros;
- o escritor André de Resende acreditava em seres fabulosos aquáticos e que em Tróia, diante de Setúbal, havia salgadeiras onde se conservavam tritões e sereias que se pescavam naquelas águas;
- o malogrado D. Sebastião viu no grande cometa de 1577 o sinal de partida para a sua funesta campanha africanca consumada pelo desastre de Alcácer Quibir;
- o extraordinário caranguejo que devolveu o crucifixo de madeira a S. Francisco Xavier que o havia perdido nas águas profundas do Índico após ter feito serenar uma terrível tempestade;
- o sapateiro Simão, à época de D. Sebastião, na esteira de Bandarra, teria sido membro do Conselho Régio, profeta de Corte e analfabeto, sendo ouvido e respeitado pelas elites dirigentes;
- a "epidemia" de religiosas e beatas grávidas, no decurso do século XVII, alegando trazer em si o "salvador do Mundo", numa espécie de "parto místico" que tomou proporções histéricas;
- o soldado António Rodrigues que "curava pela palavra" os pacientes do Exército português e recebia soldo vitalício do Estado, segundo determinação do rei D.João IV;
- o falhado atentado contra D. João IV, protagonizado em 1647 por Domingos Leite, português a soldo de Castela/Espanha, não consumada por uma "visão" súbita induzida na mente do traidor;
- a espantosa "vidente de Lisboa", em finais do século XVII, dotada com uma renda vitalícia do rei de Portugal, e cujos olhos viam água no solo e os orgãos no interior do corpo dos pacientes que a ela recorriam;
- o abominável feitiço feito de excrementos humanos de que foi alvo o rei D. João V, por parte de um grupo de mulheres, aristocratas e mulheres de virtude, envolvidas em negócios de alcova conventuais;
- a derradeira reencarnação de D.Sebastião acontecida em Lisboa, em 1813, na figura de António José Dias de Aguiar, que teve sonhos reveladores e acabou detido pela Polícia em burlesca indumentária...
e muitos, muitos mais.
Não há, nesta obra, uma tentativa de ser parcial, de ser condescendente, de ser cúmplice deste nosso outro perfil enquanto nação. Joaquim Fernandes meramente expõem os factos, apresenta-nos a enorme galeria da sua investigação. Foi aquilo. Foi assim que foi interpretado naquela altura. É, por isso, intelectualmente honesto e francamente apelativo naquilo que nos sugere: fomos e agimos assim, sabiam? E, sobretudo, isto do quem sais aos seus não degenera é, se calhar, uma tragédia coletiva que todos nós (povo, políticos, pobres e ricos, poderosos e vazios de qualquer poder) carregamos. Os céus prometeram-nos sempre tanto e, já que estamos com provérbios, o fia-te na Virgem e não corras foi mesmo o supremo conselho e caminho que deveríamos ter aprendido e realizado!
4 comentários:
Caro Miguel Gojnçalves
Pelos exemplos curiosos que cita na obra do nosso comum amigo Professor Joaquim Fernandes, recorda a velha revista francesa La France Pittoresque, o que permitirá antecipar que a referência saída do prelo constituirá, indubitavelmente, uma leitura agradável e prazenteira.
Cordialmente
Cordeialmente
Já agora, também há um livro extraordinário sobre "As Origens de Portugal, História contada a uma criança".
Acabei a releitura desse livro maravilhoso que, há uma dúzia de anos ofereci aos meus filhos. Então, liam-no eles, de dia, e li-o eu, ao mesmo tempo, depois de eles se deitarem. Uma preciosidade.
Escreveu-o e ilustrou-o Rómulo de Carvalho para um filho quando ele tinha pouca idade.
Eu creio que qualquer criança de oito ou nove anos que saiba ler gostaria de ler aquele livro e aprendia lições de História e de cidadanina absolutamente exemplares.
Mas nós, os portugueses, não gostamos de livros. Mesmo que sejam muito bons. E "nossos". E facílimos de ler.
Alguns até preferem a opacidade do "eduquês" e da "astrologia", os quais se equivalem em termos de rigor e qualidade, sendo que a segunda leva vantagem por ter muito mais pessoas a acreditar.
No comentário que fiz anteriormente, no segundo parágrafo, a seguir a "há uma dúzia de anos" devia ter sido aposta uma vírgula. Fica a correção.
Entre outras, a história de maravilhas e mitos: Dionísio, o manco e Hipólito; haveria da (in)crível ou, credível capacidade a literatura.
Quem poupa aventura, abastecida alma.
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