Nova crónica da escritora Cristina Carvalho:
Escrevi três crónicas e não vou enviar nenhuma delas para
publicação. Não as deitei fora, não as rasguei, não as apaguei, nada! Mas uma
pessoa escreve, escreve, fica a olhar para o que escreveu e chega à conclusão
que uma delas é redundante por exagero de temática, outra é azedíssima e para
azedumes já basta o que basta, quanto mais ler crónicas destas e, finalmente, a
terceira é uma espécie de lamento que também, nos dias que correm, não vale a
pena porque há situações muitíssimo piores. Sendo assim, este mês, o tema desta
crónica é um “não tema”.
Que também é magnífico não querer dizer nada de especial!
Ou porque o tempo atmosférico está horrível, porque chove,
porque não chove, porque faz frio em Maio, porque de repente veio um calor
abrasador e Maio não é tempo dele; porque os descontos do Pingo Doce; mais as
eleições em França e os tristes dos Gregos e os achatados dos Portugueses; e
aquele sujeito que ganhou sozinho o euromilhões, havia de nos ter calhado; o
rapazinho que é um grande artista; e a Feira do Livro, os livros são caros, o
futebol enche, a música chama, a música embala; raisparta os impostos; eu quero
é a praia; odeia-se esta mulher e também se odeia este homem; a escola está a
acabar; um pratinho de tremoços, uma bejéca fresquinha; vem aí o mês de Junho mais
os santos populares; deixa-me cá aprontar que o mundo vai acabar, diz que é já
no fim do ano, ai meu Deus que mal fiz eu! Rosna, rosna o raio da velha a
anunciar tempestades, estende-me aqui o teu dedo só pra ver se estás gordinho;
ele é net, ele é jornais, ele é blogues e pardais, incompetentes à solta; o
grito que se descai, a revolta que não vinga; estás aqui estás a apanhar, se te
ponho as mãos em cima… gira, gira o rodapé mais as cápsulas do café, aquelas
tais que eu adoro; gente fina é outra coisa, e os poetas aos milhões vão caindo
aos rebolões a desejar muito amor, a deslaçar muita dor, uma fartura de vida,
mais curta do que comprida!
Continuando, serenata, serenata, lengalenga atraiçoada:
Era uma vez um gatinho, coitadinho, pobrezinho, um cãozinho
abandonado, um miúdo maltratado, ainda o arrumador dos carros, um tacho de
arroz de frango só com ossos e pescoços, vou à loja dos chineses que só vendem
porcarias, o cheiro a terra molhada, o teu cheiro que consola, a vida que rola,
rola, a menina não desista, continue procurando, mais o palhaço na pista, outro
estilhaço na vista, a paciência esgotando. Olha as castanhas quentinhas, o
Chiado a transpirar, um ou outro palpitar, uma cidade a dormir, país inteiro a
gritar, as casas que vão para aí, a vender e a alugar e a malta que quer
dormir, a gente quer trabalhar, mas quem é que votou nisto? o que irá
acontecer? vou aos saldos a correr; entrecosto no churrasco, caldeiradas de
Peniche, sol a rodos, sol a rodos, os morangos lá da estufa qu’este inverno não
choveu, a vida está tão difícil, a gasolina tão cara, o Ronaldo muito giro, o
Mourinho ainda mais giro, os nossos grandes orgulhos que do resto pouco
interessa, vai ver é se eu estou lá fora, não chateies muito mais, abre lá o feicebuque, fala aí com toda a malta; já
faltou mais para o Natal, isto se o mundo viver! e se há coisa mesmo boa é uma
noite no sofá a destilar velhos vícios, um copito e um bom filme, a criancinha a
dormir, a lareira a crepitar mais o parque de campismo, a roulotte a deslizar,
a bicha pró wc, belo dia a despontar,
piquenique lá na mata, futebolada a seguir, o pessoal a sorrir, bebé a
choramingar, a missinha ao fim do dia mais o padre a abençoar.
E sempre assim por diante, assim se constrói a vida, essa
tal de rica vida, mais curta do que comprida…
CRISTINA CARVALHO
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