terça-feira, 20 de julho de 2010

Umas tantas falácias sobre uma Ordem dos Professores


“Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado; mas nada pode ser mudado se não for enfrentado” (James Baldwin, 1924-1987).

Dois comentários feitos ao meu último post Sindicatos Docentes ‘versus’ Ordem dos Professores (18/07/2010) – justificam o texto que ora publico.

Começo por me penalizar por a minha mensagem sobre a criação de uma Ordem dos Professores não ter sido suficientemente eloquente para suscitar um diálogo polémico entre os que defendem a sua criação e aqueles outros que estão contra a sua criação como se fosse uma espécie de blasfémia. Aliás, esta apatia não pode deixar de me espantar por saber que catorze ordens profissionais estão criadas e outras tantas forcejam por aparecer à luz do dia como, por exemplo, a dos assistentes sociais.

Do primeiro comentário, da autoria de José Batista da Ascenção, retenho e congratulo-me pelo libelo corajoso sobre a apatia da classe docente por um associativismo de declarado interesse público pela assunção da tomada em mãos dos professores da responsabilidade de actos próprios da profissão. Reza ele: “Agora divididos e rastejantes é que não vamos longe. Nem ninguém nos respeita, se nós próprios nos não respeitarmos. E respeitarmo-nos é (também) tomar consciência de que a nossa profissão é tão nobre e tão antiga que muitas outras recentemente surgidas não têm história, nem substância nem interesse que justifique qualquer ascendência (a que eu chamo parasitismo) sobre a nobre missão de ensinar”.

Do segundo comentário, de Lelé Batita, transcrevo: “Na linha do anterior comentador, defendo a dignificação da profissão docente. Se isso tiver de passar pela criação de uma Ordem, como existe noutras carreiras de formação superior, que venha ela. Sem prejuízo da existência de sindicatos”.

Ora, o facto de haver uma ordem profissional não invalida, de forma alguma, a existência e, muito menos, a necessidade de sindicatos porque as respectivas funções são de natureza diferente. Embora correndo o risco de me repetir, recordo que a própria Constituição Portuguesa salvaguarda, de forma inequívoca, o papel do sindicalismo português: “As associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos” (artigo 267.º, n.º 4).

A falácia mais usada sobre o impedimento para a criação de uma Ordem dos Professores tem como argumento, tão frágil como uma simples bola de sabão, a ignorância, lato sensu, sobre o conceito de profissão liberal que poucos contestam no caso dos médicos que trabalham, por exemplo, em exclusividade, em hospitais públicos ou clínicas privadas.

Como escreveu alguém, “é necessário elaborar uma ideia, antes de se intentar uma definição”. Sem dúvida que a doutrina de Lopes Cardoso, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, ajudará a essa compreensão quando escreve:

“É necessário que, mesmo quando exercida em regime de contrato de trabalho, essa profissão [liberal] seja reconhecida socialmente como relevando de grande valor precisamente porque exigindo, pelo menos, uma independência técnica e deontológica incompatível com uma relação laboral de pleno sentido. Com efeito, como tem sido definido doutrinalmente, a noção jurídica de subordinação aparece no direito moderno como perfeitamente compatível com a independência técnica do assalariado. Ela significa apenas uma dependência na organização geral e administrativa do trabalho” (Cadernos de Economia, Publicações Técnico-Económicas, Ldª., ano II, Abril/Junho de 94).

Verifica-se assim, definidos que estão os contornos contemporâneos de profissão liberal, que ela já nada tem a ver com a distinção que na Roma Antiga se estabelecia entre profissões livres e servis. Porém, se se quiser continuar a comparar o actual professor, devidamente habilitado com uma antiga licenciatura universitária ou um actual mestrado para este nobre mister, como o antigo escravo grego ao serviço dos filhos dos patrícios romanos haverá razões para considerar a docência como uma profissão servil, logo não liberal!

E isto é tanto mais espantoso, e não menos injusto, por uns tantos licenciados de outras profissões de idêntica, ou até bem menor, exigência académica, serem senhores do seu destino e dos seus pares. Outros, escravos submissos, ou manifestantes sindicais na via pública, à vontade e arbitrariedades do Estado no recrutamento de docentes não reconhecidos e sancionados pela classe. A fazer fé em Erasmo, quando nos diz que “a principal esperança de uma Nação reside na educação apropriada da sua juventude”, este estado de coisas não poderá deixar de ter consequências desastrosas para a juventude portuguesa deficientemente formada e, ipso facto, correndo o sério risco de se tornar vítima inocente da verdadeira chaga social do desemprego numa sociedade cada vez mais globalizada e exigente por não pactuar com medidas do foro estatístico que pretendem transformar em êxito o verdadeiro fracasso de uma política educativa que devia envergonhar os seus responsáveis estatais por um ensino que não ensina e passa diplomas de pechisbeque.

E tudo isto, como escreveu o reputado académico e sociólogo António Barreto, em nome “de fazer entrar o maior número de estudantes, sem consideração pelo mérito; formar técnicos de medíocre qualidade, sem zelar pela qualidade das instituições; e transmitir à população a ideia de que o acesso à universidade é um direito de todos, tal como a protecção na velhice e na doença”. Nunca mais aprendemos!

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Meu caro Rui Baptista:

Num aspecto discordo de si:não foi seguramente por a sua mensagem não ser suficientemente eloquente que não suscitou o debate que precisamos.
Mas congratulo-me por continuar a espantar-se com a apatia dos professores.
E desejo ardentemente que não venha nunca a deixar de espantar-se. Nem a cansar-se.
Nem, muito menos, a desistir.
Coisa que, além de desejar, encarecidamente lhe peço.
E sentidamente agradeço.

joão viegas disse...

Caro Rui Baptista,

Muito bem.

Na sequência de anteriores comentarios meus, que apenas pretendem esclarecer e complementar alguns pontos tocados nos seus posts, acrescento que, quanto a mim, o que caracteriza uma profissão liberal - e justifica a criação de uma ordem - não tem principalmente a ver com as "qualificações" necessarias para o exercicio da profissão.

Uma profissão é "liberal" (como o foi o magistério, durante muito tempo considerado como a profissão liberal por excelência), quando o seu exercicio beneficia objectivamente a todos, a começar pelos que a ela recorrem (portanto o interesse daqueles que a exercem não é o principal).

Liberal é uma palavra cuja etimologia remete também para a noção de dadiva (cf. as liberalidades, a deusa libera, deusa da fecundidade, etc.).

A "independência" que é hoje o que caracteriza legalmente uma profissão liberal, deriva disso mesmo. Um profissional é independente quando o seu ministério e a sua arte são por si uteis a todos e quando os que se colocam entre as suas mãos o fazem em confiança, porque sabem que ele não é um simples « mercador » preocupado em ganhar lucro, mas um profissional "liberal", que obedece a uma ética que o obriga a virar-se em primeiro lugar para o beneficio dos outros.

Uma profissão « liberal » é pois uma profissão cujo valor social foi ja amplamente demonstrado e que se taduz numa ética, ou numa deontologia, que todos aceitam so poder ser plenamente e cabalmente cumprida sob a vigilância esclarecida dos profissionais experimentados.

Infelizmente, estas verdades andam cada vez mais esquecidas, o que eu, que sou um modesto profissional liberal, lamento profundamente…

Anónimo disse...

Falácias ou falócias? JCN

Anónimo disse...

Seria possível partilhar o doc. PowerPoint sobre falácias a que pertence o slide que apresenta como ilustração deste post? Para o caso de o poder fazer, deixo-lhe o meu endereço de email: alessandrajonas@gmail.com Obrigada, desde já.

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