sábado, 24 de julho de 2010

Nacionalmasoquismo: a propósito de alguns comentários

Novo texto de João Boavida na sequência de um anterior publicado aqui.

Face a alguns comentários ao texto Nacionalmasoquismo, a propósito de um poema de Jorge de Sena, sinto necessidade de fazer certos esclarecimentos e algumas achegas.

É evidente que seria uma honra, hoje, para qualquer universidade portuguesa, ter tido Jorge de Sena entre os seus professores. E a Universidade de Coimbra certamente que se orgulharia muito disso. Como qualquer outra, repito. Não estou por dentro dos episódios que fizeram com que uma proposta de contratação pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa tenha fracassado. Ou melhor, sei alguma coisa, e até de um ou outro nome (de quem, em princípio, não seria de esperar tal atitude) que eventualmente terá estado na origem desse impedimento. Mas o que sei, de facto, é pouco. Também não sei por que razão não se concretizou, mais tarde, em 74 ou 75, uma proposta de contratação, para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, da responsabilidade, suponho, do professor Victor Matos, da mesma Faculdade (o poeta Victor Matos e Sá). Também não conheço as razões desse falhanço, talvez fosse já tarde demais para reparar o erro, ou a Sena, nessa altura, já não interessasse. Se alguém conhecer os factos e achar por bem vir esclarecer esta assunto, eu, pessoalmente, agradeceria, e por certo todos nós.

Lamento que não se tenha conseguido a sua contratação e penso que foi lamentável para a cultura portuguesa. Dito isto, voltemos a Jorge de Sena. Homem invulgar a muitos níveis e que nos deixa uma obra impressionante e fortíssima, de valências raramente conciliáveis numa só pessoa – investigação, cultura, erudição, e criação original. Mas que, talvez por se sentir superior e não ser reconhecido, sem deixar de perceber como a sua própria grandeza incomodava e tornava invejosos muitos dos seus confrades, o levava por vezes a ser agressivo e até injusto.

Tudo agora se lhe desculpa, mas muitos não lho desculparam então. O poema das Dedicácias aqui referido parece-me o espelho de uma necessidade de ataque sem objecto digno disso, e de, portanto, alguma incoerência, mesmo que a poesia não cuide dela nem interesse para o seu valor. Mas o facto não impede que possamos descobrir a dita injustiça eventual pressuposta e sobre ela falar. De facto, dizer de alguém que é culto, inteligente, viajado, versado em Hegel e fenomenologia, mas que não se salva por andar na Rua da Sofia, tem algo de inaceitável, sobretudo quando se sabe que a Rua da Sofia foi única na Europa do seu tempo, e pelo que foi e pretendeu ser, pelo que poderia ter sido e, portanto, pelo que ainda poderá vir a ser, é, pelo menos, inadequado.

E, sendo assim, qualquer um – e eu também - tem o direito de comentar o escrito de Jorge de Sena; por muito que o admire, como admiro. Tudo se lhe desculpa, porque o talento tudo redime; mas eu posso anotar o facto, levantar um pequeno porém, ou não? Quanto a Coimbra e à catedrazeca a que se refere um comentário, o caso tem mais que se lhe diga porque a realidade é sempre mais complexa que a nossa raiva.

Jorge de Sena sempre lamentou, no fundo, que nenhuma universidade portuguesa o tivesse acolhido. Era um dos seus ressentimentos, pelo menos a princípio, antes da sua instalação definitiva nos EUA. É claro que ter uma cátedra numa universidade americana dispensa uma cátedra em qualquer universidade portuguesa. Isto em princípio, porque na América há universidades e universidades.

Mas, para além disso, é de notar que o que parece evidente hoje não era há quarenta e tal anos. Não podemos esquecer a perspectiva de itinerário pessoal que estas coisas têm, e em Jorge de Sena tiveram de modo quase épico, nem ignorar a época em que estas coisas aconteceram, ou podiam ter acontecido as que não chegaram a acontecer. Pensar assim é pensar num Jorge de Sena abstracto, e esquecê-lo enquanto emigrante intelectual à procura de uma cátedra no Brasil, com um rancho de filhos para sustentar, e com o trabalho constante, titânico, assombroso para construir uma obra, imensa, variada e profunda, e com provas académicas e concursos pelo meio, e obrigações e urgências e prazos, tal como cá, e tudo isto por entre dificuldades de toda a ordem e trabalhos e viagens e doenças e faltas de dinheiro.

É comovente ler as cartas a Sofia de Melo Andresen, já aqui referidas, e perceber a sua mágoa e o seu orgulho ferido, e como a Universidade Portuguesa (e nem especialmente a de Coimbra, note-se; Coimbra tentou remediar o mal, tanto quanto sei) perdeu uma excelente ocasião de se valorizar e de valorizar a cultura portuguesa, cá dentro. Portugal, sabe-se, é frequentemente ingrato e injusto com os seus melhores filhos, e com ele foi-o sem dúvida, e todos perdemos com isso.

Embora Sena, por todas estas razões que até se compreendem, tenha criado muitos anticorpos, que se voltaram contra ele, enquanto vivo. Somos, diz-se também, um povo onde abundam os mesquinhos e os invejosos e o reconhecimento post mortem é o nosso forte. Mais uma vez assim foi.

Finalmente, a oportunidade que alguns sentem de dizer mal de Coimbra é um case study que merecia investigação.

Não se diz nada sobre Coimbra que umas tantas almas não reajam com um imediato e automático reflexo de Pavlov constituído por umas tantas ideias feitas e uns adjectivos que, por si só, reflectem afinal mais o sujeito que os usa que o objecto a que se referem. É bom começar a mudar de discurso porque se arriscam cada vez mais a gritar para um comboio que, ao passar, absorve, com o fragor, todos os berros, até os mais raivosos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Prof. João Boavida:

Apesar de, como Jorge de Sena, ter andado por esse mundo fora, de universidade em universidade (Santiago de Compostela, Barcelona, Salamanca, Paris, Luanda, etc.) com oito filhos às costas, igualmentemente "excluído", nem por isso deixo de considerar a poesia do visado como "simplesmente execrável", no polo oposto à minha que, "sempre doce e purificadora", "é conforme o Bem, o Belo, a Harmonia, a Graça" (Joaquim de Montezuma de Carvalho). Feitios. JCN

Anónimo disse...

Ah, ah, um postezinho a tentar rectificar!
Adoro esta frase:
"De facto, dizer de alguém que é culto, inteligente, viajado, versado em Hegel e fenomenologia, mas que não se salva por andar na Rua da Sofia, tem algo de inaceitável, sobretudo quando se sabe que a Rua da Sofia foi única na Europa"
Uau! Digam-me lá quem eram os craques que fizeram esta rua única na Europa.
E já agora, não foram estes iluminados que passavm na rua Sofia, os responsáveis pelo afastamento do Sena? É isso que o Sena queria dizer, que apesar de tudo a mentalidade que os lixava.
Que é que vocês queriam que o Sena fizesse senão ficar amargurado com esta burrice que o impedia de viver no país que gostava? Que andasse manso e a rir-se submisso para os da rua Sofia?
luis

ana disse...

Não querendo entrar em polémicas, que de certa forma são saudáveis porque se discute e se aprecia a tese e a antítese, julgo que se deve, antes do mais, olhar o homem no seu tempo e isso diz tudo.
Amargura, tristeza e possivelmente vaidade não invalida a escrita de Jorge de Sena que muito me apraz, tal como a sua mundivivência.

Quanto a rectificar ou não, julgo que se algo suscita dúvidas e críticas é bom que se escreva sobre elas, podendo chamar rectificativo ou não.
Bom dia !

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