sexta-feira, 30 de julho de 2010

A MÁFIA INVENTA O TERMÓMETRO 1

Por amabilidade da editora publicamos um extracto do livro de Tony Rothman "Tudo é relativo" que acaba de sair na Gradiva. Outras histórias, tanto ou ainda mais interessante do que esta, encontram-se nos outros capítulos.

Os compêndios contam metade: «Entre outras unidades [de pressão] de uso corrente encontram-se a atmosfera, o milímetro de mercúrio — ou torr — e o milibar.» Bolas. É uma maldição do maior calibre: foi promovido de pessoa a unidade e perdeu o nome. Truncado e posto em letra minúscula, a prova provada de que se desvaneceu no pano de fundo cultural, à semelhança da sua invenção, que se encontra pendurada sem qualquer fim nas paredes dos restaurantes de portos. Por vezes um autor lá deixa cair o seu nome completo. A referência é invariavelmente lacónica: «Um outro instrumento usado para medir a pressão é o barómetro comum, inventado por Evangelista Torricelli (1608-1647).» Pressão do ar, barómetro. Ah. Uma vez por outra, quando um autor perde a cabeça, Torricelli tremeluz momentaneamente em forma humana.

Berte Bolle, na sua história do barómetro, diz corajosamente:

Torricelli montou o tubo com mais de dez metros de comprimento na sua casa, com o topo a sair pelo telhado. Pôs um pequeno boneco de madeira a flutuar na água no topo do tubo; com mau tempo, a altura da coluna baixava de tal forma que o boneco já não podia ser visto da estrada, enquanto com o tempo bonito flutuava, alto e distinto, onde todos o podiam ver. Em breve correu o boato de que mestre Torricelli tinha um pacto com o Diabo e o barómetro de água foi rapidamente retirado!

Estamos convencidos. Mas espere aí. No relato de Sheldon Glashow, Torricelli leva a cabo o seu trabalho herético precipitando-se numa correria ao longo do cais para gáudio dos espectadores. Os boatos, evidentemente — e a Inquisição — não o conseguiram impedir: «Torricelli enchia longos tubos, selados numa das extremidades, com líquidos como mel, vinho e água do mar, e amarrava-os com firmeza na posição vertical ao mastro dos navios. Constatou que a altura da coluna dependia apenas do peso total do líquido contido no seu interior.»

Isaac Asimov, evitando o drama em favor do conhecimento, apresenta uma história completa para edificação dos seus leitores. O imortal Galileu, patrão de Torricelli, sugeriu ao seu assistente que investigasse o motivo pelo qual as bombas de água eram incapazes de elevar o líquido a mais de dez metros acima do seu nível natural. Isso é que eram bons tempos. A ciência chamava-se filosofia, Aristóteles imperava e a natureza tinha horror ao vazio. A posição de Galileu era puramente aristotélica: as bombas criam um vazio parcial acima da água e a água precipita-se para o preencher.

O vazio suga. Evidentemente, porém, a capacidade de sugar do vazio tinha limites — cerca de dez metros. Asimov transmite os pensamentos de Torricelli:

Ocorreu a Torricelli que a água era elevada não porque fosse puxada pelo vazio, mas porque era empurrada pela pressão normal do ar. Ao fim e ao cabo, o vazio na bomba produzia uma baixa pressão do ar e o ar normal no exterior da bomba empurrava com mais força.

Em 1643, para pôr à prova essa teoria, Torricelli recorreu ao mercúrio. Dado que a densidade do mercúrio é 13,5 vezes superior à da água, o ar só o deveria elevar a 1/13,5 vezes a altura a que elevava a água, ou seja 76 cm.
Torricelli encheu um tubo de vidro com 1,80 m de comprimento de mercúrio, tapou a extremidade aberta, colocou-o verticalmente numa taça de mercúrio, destapou-o e viu o mercúrio a sair pelo tubo, mas não na totalidade: 76 cm de mercúrio mantiveram-se, conforme seria de esperar.

Um pormenor admirável. É como se estivéssemos ali com Torricelli. «Passa-me o mercúrio», diz ele. Totalmente inconciliável, então, com este comentário retirado do ciberespaço: «Em 1643, Torricelli propôs a sua experiência, que foi realizada pelo seu colega Viviani.»

Um pormenor. Pois...

A verdade é que ninguém tem bem a certeza do que se passou. Sabemos que eram ambos italianos e que eram amigos. Hoje formariam um grupo de investigação. Quando um grupo de investigação monopoliza uma área chamamos-lhe uma máfia. Na altura, tal como agora, o cientista mais antigo fica com os louros. Para compreender aquilo de que ninguém tem a certeza, regressamos ao despontar do século XVII. A contra-reforma na Europa está em curso, a inquisição está a aquecer, Galileu condescendentemente ignora a descoberta de Kepler de que as órbitas planetárias são elipses e não círculos. Newton ainda não nasceu. Em terra, a questão filosófica na ordem do dia é a possibilidade do vazio.

Não é possível. A resposta é óbvia; vamos andando para o julgamento de bruxas de hoje. Essa é pelo menos a opinião universal corrente, já com 900 anos. Qualquer objecção terá de se confrontar com uma citação da autoridade suprema: Aristóteles. Aristóteles, na sua frase tantas vezes citada, declarou: «A natureza tem horror ao vazio» (o que quer que Aristóteles tenha declarado, declarou-o em grego antigo, mas esta é a tradução habitual e ele acreditava nisto). Aristóteles apresentou alguns argumentos contra o vazio, tanto físicos como lógicos. Primeiro é necessário compreender que no mundo de Aristóteles — e no mundo do século XVI — não existem átomos. A água é uma substância contínua.

Dividir a água em pedaços cada vez mais pequenos conduz apenas a pedaços cada vez mais pequenos, até ao infinito. Não há motivo para supor que a divisão conduzirá a um estado composto por partículas últimas entre as quais não existe nada. Não, o universo está cheio; é um espaço pleno cheio de matéria (por oposição a um vazio). Mais do que isso, no mundo pré-Galileu não existe o conceito de inércia, a ideia de que, sem interferência, um objecto se desloca a uma velocidade constante. Pelo contrário, a velocidade de um objecto depende da resistência do meio no qual se desloca. Um vazio — o vácuo — não oferece resistência. Desse modo, a velocidade de um objecto que se deslocasse através do vazio seria infinita. É claramente um absurdo.

Trata-se de argumentos físicos que Aristóteles levantou contra o vazio. O seu argumento lógico principal é que a posição de um objecto — o seu lugar — é sempre entendida enquadrada nos limites interiores de um corpo que o rodeia. Os não-filósofos designam-no por contentor. No entanto, o vazio não tem propriedades.

De um objecto no seu seio não se pode dizer que se encontra em nenhum tipo de lugar. Nem se poderia dizer que um objecto se desloca no interior de um vazio (dado que não possui propriedades para distinguir os locais). Assim sendo, um objecto não pode ter um lugar a menos que se encontre no seio de alguma substância. O vazio é impossível, com base em argumentos lógicos.

Se o vazio é impossível com base em argumentos lógicos, isso significa que Deus não o poderia produzir mesmo que quisesse. Essa questão perturbou os teólogos do século XIII. Por esse motivo, no século XVII as pessoas estavam dispostas a discutir a questão. Porém, a opinião dominante era que o vazio era pelo menos uma impossibilidade física, ainda que não fosse uma impossibilidade lógica.

No Panóptico Contemporâneo de Conceitos Passados e Presentes, as exposições sobre vazio e pressão estão dispostas lado a lado. Por aqui, por favor. Da nossa perspectiva, é difícil ver como um conceito razoável de vazio poderia emergir sem um conceito razoável de pressão. Um discípulo anónimo do século XIII do filósofo Jean de Némore compreendeu que a pressão num líquido aumentava com a profundidade, mas a publicação do livro de Némore em que a discussão aparece foi atrasada três séculos. Isaac Beeckam (1588-1637) parece ter aceitado a ideia de um vazio e em 1614 escreveu no seu diário que o ar tem peso e exerce pressão sobre os corpos que se encontrem por baixo, pressão que aumenta com a profundidade do ar. Apesar destes faróis isolados de discernimento, não surgia um entendimento claro do conceito de pressão. O ar não tem peso.

Dois anos antes de Beeckam compreender os aspectos essenciais do problema, Galileu, num acesso de rancor, exprimiu a sua sabedoria universal: «Ainda que então adicionemos uma quantidade muito grande de água por cima [do sólido], não iremos por esse motivo aumentar a pressão ou o peso das partes que cercam o referido sólido.» Um ano depois de Beeckam, em 1615, Galileu prosseguiu as suas negações: «É de notar que todo o ar em si mesmo e por cima da água não pesa nada [...]. E que ninguém fique surpreendido por o ar não pesar nada, pois é como a água.»

Sobre este pano de fundo, Giovanni Batista Baliani (1582-1666), de Génova, escreveu a Galileu em 1630 para relatar os resultados de uma experiência. Tinha tentado transvasar com sifão a água de um reservatório sobre uma colina com cerca de 21 m de altura e o sifão não funcionou. O sifão, num procedimento conhecido dos ladrões de gasolina da actualidade, foi inicialmente preenchido com água e colocado sobre a colina. Mas quando o tubo foi destapado o nível de água do lado do reservatório voltou a cair para cerca de dez metros. Mistério? Não para Galileu. Condescendeu em responder a Baliani que a resposta era óbvia: a força do vazio elevava a água, mas estava limitada a dez metros. Baliani esteve mais perto da verdade: achava que o vazio era possível e que a água e o ar tinham peso.

(continua)

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