Aqui no De Rerum Natura gostamos muito das crónicas do bioquímico António Piedade. E sabemos que muitos dos nossos leitores também. Com os agradecimentos ao autor, aqui está mais uma.
Ouvi o Doutor Arsélio Pato de Carvalho, dizer, em tom mesclado com alguma provocação, que as dores não têm realidade física, não existem per si. Ou seja, não são um objecto ou corpo que se possa apalpar, remover com uma pinça. A dor é antes uma experiência sensorial, um outro sentido dedicado ao alarme de algo que está a interferir com o nosso estado de saúde. É algo que “arde e não se sente”, como qualificou Camões a uma dor em particular.
Se cada dor tem uma causa, ela é mais um aviso, uma mensagem mais ou menos declarada, por vezes insuportável como se mil vozes gritassem em babel dentro da nossa cabeça: Mas, enquanto entidade física a dor não é tangível e muito subjectivamente mensurável.
Todos sabemos que a capacidade em suportar a dor varia, e muito, de pessoa para pessoa. De certa forma, depende da história de cada um e, com certeza, da sua estrutura nervosa. Uma rede fina de terminações nervosas é dedicada a detectar inúmeras sensações ligadas ao que chamamos dor (mas não só). E essa rede é parte integrante, não só da pele que nos recobre, mas também de películas que envolvem órgãos e tecidos nosso corpo adentro. Reagem a diferenças de temperatura, pressão mecânica, concentrações de sais, ácidos e bases, luz, etc., e enviam essa informação para o cérebro, a maior parte via medula espinal, esse grande aqueduto de informação nervosa que flui por ela vinda de todas as partes do nosso corpo a uma velocidade de cerca de dez metros por segundo! O cérebro processa e integra a informação recebida, identifica a zona emissora da mensagem e procede de acordo com o plano, finamente ajustado pela selecção natural ao longo de milhões de anos: gritamos de dor, avisamos os outros de que estamos em perigo, chamamos ajuda, sofremos estóica, racional e emotivamente e contornamos o sinal de aviso que é a dor, ou desmaiamos por não conseguirmos suportar a intensidade da informação que diz que estamos gravemente feridos ou mesmo em perigo de vida.
Muito do processamento dessas informações é efectuado só, e localmente, ao nível da medula espinal, poupando ou permitindo que o encéfalo se ocupe com outros afazeres, diríamos que mais cognitivos. Alguém pode estar a pisar-nos e nós nem darmos por isso, porque o nosso cérebro está absorto numa paisagem bela, ou num qualquer outro estímulo captador de atenção privilegiada à dor. Daí a importância em ter uma estrutura de processamento neuronal próxima da maior parte do corpo, com inúmeras saídas e entradas para uma maior eficácia e rapidez no processamento do sinal de dor periférica. Só chega ao cérebro se for mesmo necessária uma resposta à altura das circunstâncias.
Como nos movemos com grande amplitude e variedade de movimentos, a medula espinal, longitudinal a todo o corpo, tem de estar protegida por uma estrutura óssea ela própria ajustada a essa mobilidade. As vértebras, os discos intervertebrais e as apófises articulares cumprem essas funções. Protegem delicadamente a auto-estrada de informação nervosa de agressões e criam uma estrutura, flexível quanto baste, para os movimentos necessários à locomoção, mas também ao suporte do crânio. Não menos importante, permitem uma postura vertical como é o caso conseguido na nossa espécie.
Os detalhes estruturais e funcionais da coluna vertebral são de uma beleza arquitectónica espantosa. Os tubos flexíveis das nossas canalizações e outras engenharias similares são “primitivas” quando comparadas com a funcionalidade eficaz da coluna vertebral.
E a natureza utilizou e adaptou o "conceito" inúmeras vezes. Os investigadores da taxonomia bem sabem disso e desde cedo muitos seres vivos animais foram agrupados na mesma “gaveta” filogenética do filo Chordata, sub-filo Vertebrata (Cuvier, 1812). Ou seja, animais que apresentam um tubo nervoso dorsal (cordata), fendas branquiais e uma cauda pós-anal, em pelo menos uma etapa do seu desenvolvimento, e que possuem uma coluna vertebral e um crânio (vertebrata) que lhes protege o encéfalo. Dito de outra forma, possuem uma parte do seu esqueleto especializada na protecção do precioso sistema nervoso central e periférico.
E quando esta protecção operacionalmente flexível falha? Neste caso, ela própria desencadeia e dispara o alarme DOR. Partes por isso responsáveis do cérebro recebem a “notícia” de que a medula espinal está eventualmente a sofrer uma afecção. Dada a importância desta parte do sistema nervoso central, o alarme é intenso e as dores no registo do insuportável.
Como se disse atrás, a percepção da dor é muito subjectiva, pois depende muito da individualidade genética e das especiarias com que cada indivíduo foi moldando o seu desenvolvimento e envelhecimento. E há nisto muita filogenia genética e molecular.
Descobertas recentes na embriologia têm demonstrado a importância decisiva da activação de determinados genes em etapas bem determinadas do desenvolvimento do embrião e, também muito importante, o momento em que a sua activação se efectua em zonas específicas. A sinfonia da diferenciação celular que nos desabrocha em seres complexos, tem uma orquestração muito bem definida. Os vários instrumentos de cada naipe só tocam a sua parte no preciso momento e em conformidade com as instruções do seu genoma concomitantemente modelado pelas condições ambientais (no caso do embrião é o ambiente intra-uterino que importa).
A descoberta agora publicada pelas investigadoras portuguesas Tânia Resende, Isabel Palmeirim e colegas (aqui) vem mostrar o papel determinante de um gene, o Shh (Sonic hedgehog), muito activo durante as primeiras semanas da gestação embrionária e determinante da futura saúde e robustez funcional da coluna vertebral do futuro adulto. É uma espécie de relojoeiro da formação das vértebras ao longo do tubo neural, futura medula espinal, albergue de longas e presentes dores…
(continua).
segunda-feira, 5 de julho de 2010
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2 comentários:
Caríssimos,
Deixam-me embaraçado. Agradeço a oportunidade que me dão de aqui publicar estes textos antes saídos em jornais de expressão regional. Como já antes disse, faço-o por gosto de comunicar o que sei e verificar, pelos comentários dos leitores, o que não sabia ou o que estava incorrecto.
Muito obrigado a todos e até breve.
Reconhecido,
António Piedade
QUARTOS PEGADOS
Connosco vive a dor em paridade
com o prazer, em quartos separados,
mas de tal ordem juntos e chegados
que ouvir-se podem com facilidade.
Revezam-se no sono, de maneira
que, enquanto um dorme, o outro, em seu lugar,
em condições está para actuar
a seu talante e sem qualquer barreira.
Neste jogo de forças, o prazer
leva sempre a pior perante a dor
que tudo tem, de resto, a seu favor.
Pondo em confronto o deve e o haver,
são mais as horas que, no quarto ao lado,
dorme o prazer... de sono tão pesado!
JOÃO DE CASTRO NUNES
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