quarta-feira, 21 de julho de 2010

Sobre a cultura científica


Parte de uma entrevista que dei a um estudante da Faculdade de Letras de Coimbra, que :

P- Que características definem o conceito de cultura científica em Portugal?

R- A ciência é universal e o conceito de “cultura científica” é o mesmo aqui e em qualquer parte do mundo: a expressão refere-se à parte da vasta cultura humana que tem a ver mais de perto com o empreendimento científico, que de uma forma muito resumida pode ser entendido como a aquisição de conhecimento sobre o mundo. Afirmar que a “ciência é parte da cultura” é ultrapassar a famosa questão das “duas culturas”, a literária e a científica, que C.P. Snow colocou em 1959. Não há duas culturas, mas uma só, sendo a ciência parte inalienável dela. A posse de cultura científica é hoje considerada uma condição de cidadania, isto é, de pertença à sociedade. Mas pergunta-me por Portugal. O nosso país caracteriza-se por uma cultura científica ainda pouco generalizada, resultado de um atraso no cultivo da ciência e na disseminação dela aos cidadãos. Precisamos de mais cultura científica de modo a evitar que, entre nós, muita gente pense que a ciência e a cultura estão divorciadas.

P- Quais os principais elementos que diferenciam a cultura cientifica de outras variantes da cultura?

R- Uma das marcas maiores da ciência é o reconhecimento do erro. Ora, se um resultado científico pode estar errado, julgo que nunca se poderá dizer o mesmo de uma obra de arte. Os critérios de validação da ciência – principalmente o uso do raciocínio lógico e a concordância com a observação ou a experiência - são decerto diferentes dos de outras actividades humanas. Apesar disso, outras áreas da cultura, por muito distintas que sejam da ciência, podem e devem cruzar-se com ela, para enriquecimento mútuo. As artes em geral, que a generalidade dos cidadãos associa mais rapidamente à cultura, constituem uma dessas áreas, abrangendo subáreas como a literatura, as artes plásticas, as artes de palco, etc. Cada vez mais se tem assistido à intersecção da cultura artística com a cultura científica: por exemplo, obras de arte buscam inspiração na ciência e a ciência reinvindica o uso de elementos ou critérios estéticos. Julgo que nessa aproximação não há qualquer risco de confusão ou sincretismo. Um cientista precisa de ter imaginação, mas a sua imaginação não pode ser tão livre como a do artista, tem de estar contida na “camisa de forças” que é a realidade.

P- Como qualifica o actual estado da cultura científica em Portugal?

R- Melhorou muito nos últimos anos, com o investimento enorme que houve na ciência e na sua difusão pública no último quarto de século. Mas o ponto de partida era muito baixo. Assim, há inquéritos internacionais recentes de sociologia da ciência que mostram que os portugueses têm na sua relação com a ciência dificuldades maiores do que as de outros povos europeus. Se muito foi feito, muito há ainda a fazer neste domínio.

P- O que acha que pode ser feito para melhorar a aprendizagem das ciências e a divulgação de cultura científica em Portugal?

R- O ensino da ciência deve ser feito em larga medida na escola e aí tem residido a nossa mais importante falha. O ensino formal da ciência, como é revelado por indicadores internos (resultados dos exames de disciplinas científicas) e por comparações internacionais (PISA e TIMMS), não tem revelado progressos satisfatórios. Ora essa situação não pode ser inteiramente colmatada por via do ensino informal da ciência que sempre se efectua quando há divulgação da cultura científica (através dos média, dos museus e centros de ciência, etc.). Arriscaria dizer que, nos últimos anos, progredimos mais no ensino informal do que no ensino formal da ciência, mas o progresso tanto de um modo como doutro não foi suficiente. Importa, por isso, enfrentar em particular o problema da ciência na escola, começando, na minha opinião, o mais cedo possível. O recurso à experimentação no ensino básico (e, antes disso, mesmo no jardim-escola) é uma via que nos falta percorrer de uma forma mais convicta e eficaz. Para isso, é mister formar mais adequadamente professores desse nível de ensino, melhorar currículos e fornecer bons materiais. Claro que, ao fazer isto na escola, tem de se continuar a fazer tudo aquilo o que já se faz fora da escola, como acontece nas actividades do Ciência Viva, e sempre que possível em coligação com a escola.

P- Qual é o papel do governo na divulgação do conhecimento e da cultura científica?

R- A causa da ciência e da cultura científica é uma causa pública. Diz, portanto, respeito ao governo no qual, em democracia, delegamos a organização da escola pública e dos meios públicos de promoção da cultura científica. Sem investimento público não podemos esperar que a ciência cresça e a cultura científica avance. É também para isso que pagamos os nossos impostos e participamos em eleições. Mas essa delegação não nos isenta das nossas responsabilidades. A causa da ciência diz respeito às empresas e outras instituições privadas, assim como, em geral, aos cidadãos, na medida dos seus saberes e possibilidades. Parte substancial do investimento em ciência e cultura científica deve ser não governamental. Nas sociedades mais avançadas as empresas e os cidadãos dispõem de amplo espaço de iniciativa e podem envidar esforços que se somam ao esforço dos governos. Apesar de alguma aproximação no passado mais recente, Portugal não alcançou ainda um estádio de desenvolvimento suficiente para que o investimento privado na ciência exceda largamente o público, como acontece por exemplo nos países do Norte da Europa.

P- Qual foi o impulso dado à cultura científica pelo programa Ciência Viva?

R- A Agência Ciência Viva tem concretizado vários projectos, que confluem todos eles na defesa e alargamento da cultura científica. Sem o Ciência Viva estaríamos muito piores. Foi uma das boas ideias que frutificaram entre nós nos últimos tempos e só espero que continue o bom trabalho que tem realizado. Em Coimbra, temos desde há pouco tempo o Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho a funcionar em pleno, em homenagem ao grande poeta e divulgador de ciência.

P- Qual foi o papel da “Física Divertida” no panorama nacional da divulgação científica?

R- “Física Divertida” é um livro que escrevi em 1991 e que teve uma sequela, há três anos, com “Nova Física Divertida”. Nesses livros apenas pretendi contar algumas histórias da física, clássica primeira e moderna depois, de uma maneira compreensível para um público alargado, na tradição de outros livros de divulgação científica. Se o consegui ou não, não sei. Não posso ser juiz em causa própria.

P- Acha que existe um público alvo para a cultura científica, ou assimilação desta é universal e acessível a todas as faixas etárias e classes sociais?

R- A cultura científica deve ser de todos. Em particular, é para todas as idades, e é tanto para pobres como para ricos. Claro que os mais jovens estão numa fase da vida mais particularmente susceptível à aprendizagem, na fase em que frequentam a escola. E claro que os pobres ficarão ainda mais pobres se, na escola e fora dela, não lhes for proporcionada a cultura científica. Deve haver uma atenção especial tanto para os mais jovens como para os mais pobres.

P- À luz do conhecimento cientifico hoje existente, e considerando que o progresso é imparável, quais são os limites impostos à ciência pela ética?

R- A ciência tem de ser acompanhada por consciência, isto é, não pode desenvolver-se sem a ética. Pode-se fazer muita coisa na investigação científica, mas nem tudo se deverá fazer. Os limites devem ser impostos não apenas pelos próprios cientistas, mas pela sociedade em geral. Esses limites têm de ser continuamente pensados e redefinidos.

P- Se alguém lhe dissesse que é possível alcançar a verdade absoluta que resposta daria?

R- É possível, de facto, alcançar o conhecimento, como mostra toda a história da ciência. Quanto à “verdade absoluta”, não sei o que é isso. A ciência é cumulativa, isto é, cada vez se sabe mais e o que se sabe de novo não prejudica tudo o que se sabe, mas apenas uma pequena parte. Como este processo tem sido contínuo, é difícil defender, em ciência, o conceito de “verdade absoluta”. Mas é perigoso cair na contingência e no relativismo: há conhecimentos que foram adquiridos e que não vão mudar, como, por exemplo, a Terra é o terceiro planeta mais distante do Sol, que o nosso corpo é feito de células, etc.

3 comentários:

EC disse...

Visito regularmente o vosso blog.
Partilho um presente em:
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Um abraço

Anónimo disse...

Será um prémio da Educação Especial?

João Calafate disse...

Gostaria de dar os meus parabéns ao Professor Carlos Fiolhais, pelo discurso culto e lúcido com que nos habituou e em particular nesta entrevista.

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