Nova crónica do nosso colaborador habitual António Piedade e, tal como outras, saída antes no "Diário de Coimbra":
Tinham-se passado vinte dias desde que a mãe da Ti Alzira engravidara. Para além de uma estranha nostalgia, antecipação do feitio da filha, a mãe não sabia que transportava dentro de si uma semente de mulher valente, carácter vertical invejável, mas fraca das costas, um cabo de tormentos inenarráveis.
A futura Ti Alzira, aninhada no útero materno, tinha então uns diminutos dois milímetros, medida essa hoje descartável em comparação com os seus 1710 milímetros estendidos. Sim, porque as dores cortantes e desafinadas nas costas, melhor, naquela mísera coluna, a encolhem para a altura do cabo (ainda alto) da sua inseparável vassoura.
Naqueles momentos mágicos do seu tempo embrionário, já se encorpava uma extremidade mais globular (futura cabeça) e outra mais embicada (fundo das costas…). Entre estas extremidades já se alinhavava o tubo neural, ainda notocorda, futura centralidade da medula espinal. Fileiras de células de origem mesodérmica ladeavam o sulco de sensações e preocupações futuras. Em lugar determinado pela densidade de condimentos proteicos e acídicos, algumas dessas células avolumavam-se em ares vertebrais. Sim, dois pares de agregados de células mesenquimais designados por somitos são ainda projectos de vértebras lombares, aí por essa altura do lombo da Ti Alzira.
Ao longo e ao redor do tubo neural, varia o gradiente (diferença na concentração) de diversas biomoléculas que dão corda ao relógio das decisões biomoleculares, torneadoras das abóbadas vertebrais. Uma delas, a proteína Shh (S de Sonic; hh de hedgehog homolog – homólogo de ouriço-cacheiro), está mais concentrada na extremidade caudal, enquanto outras, como as Wnts, se mobilizam mais a nível cervical. Estas diferenças, que variam suave e continuamente ao longo da futura coluna vertebral, decidem onde e quando imigrará cada célula mesenquimal embrionária dos somitos para concretizar a futura herança óssea, cartilaginosa e muscular do elemento vertebral.
A precisão micrométrica da diferenciação advém da natureza nanométrica dos implacáveis decisores biomoleculares. Qualquer perturbação (por exemplo, chuva alcoólica!) nestas concentrações e, num piscar de olho, a futura vértebra ficará minimamente desalinhada. Esse evento, mesmo que único, poderá determinar que a futura coluna, no seu esforço e desgaste diário, comece a ceder por ali. Minimamente desviada por um jeito malfadado, pressiona o conteúdo neuronal da medula espinal e… dores, muitas dores e outras antecipadas no córtex cerebral, cinzelam o amanhã dorido da Ti Alzira, qual ouriço-cacheiro por ali entranhado.
Ainda por cima, dos somitos também se diferenciarão as células para as costelas e de toda a musculatura lisa ligada, de uma ou outra forma, a elas e à coluna. Por exemplo, à respiração. Quantas vezes a Ti Alzira ficou como que sem respirar, por causa de uma dor nas costas?!
Mas o que é que determina esse gradiente gelatinado de Shh, Wnts e outras biomoléculas? Os genes. Sim, no caso da proteína Shh, uma das sinalizadoras do relógio embrionário, é o gene shh, localizado no braço maior do cromossoma 7 (aqui). A sua diferente actividade ao longo de cada uma das células mesenquimais a ladear o tubo neural causará uma maior ou menor síntese da proteína com o mesmo nome. Esta gradação da expressão genética determina o gradiente de proteína sinalizadora.
As investigadoras portuguesas das Universidades do Minho e do Algarve, mencionadas em minha crónica anterior, descobriram esta relação entre a actividade do gene shh e a coordenação espácio-temporal da formação embrionária das vértebras. Verificaram que a sua falta pode fazer retardar o início da “obra” em nove horas! Que desalinhamento, que dores futuras. Mas também identificaram que uma outra molécula, o ácido retinóico, pode recuperar o atraso, caso esteja nas redondezas do desalinho.
(continua)
António Piedade
segunda-feira, 12 de julho de 2010
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16 comentários:
Não sei já onde li que a dor é o corpo em desaparecimento, o que me obrigou a descortinar onde é que o autor quis chegar, ou o que escondia numa síntese tão enigmática.
Suponho que no estado de perfeita saúde ninguém dá pela existência do seu corpo, é como não existisse.
Com a dor passamos a ter consciência de que temos um corpo que se queixa, e que, se não atalharmos, ele irá desaparecer.
Seria a todos os títulos interessante que António Piedade no-lo revelasse. O que antecipadamente agradecemos.
IMPONDERÁVEIS
Tudo no ser humano é contingente
desde o prazer à dot, sem distinção;
tudo sujeito está seguramente
às condições de cada ocasião.
Quando se nasce, ao que parece, já
dentro de nós trazemos um destino
que por qualquer razão se alterará
mesmo que à margem do poder divino.
Tudo é fortuito em nós, como é notório
e sem lugar a dúvida constata
o cientista em seu laboratório.
Razão tinha o filósofo ao dizer
que é a circunstância, sem lugar ou data,
que marca a nossa forma de viver!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Ao JCN com um abraço
Hino à Dor
Sorri com mais doçura a boca de quem sofre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar onde, como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.
Soa, como se um beijo ou uma carícia fosse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não há para nós consolação mais doce
Que o regaço de quem muito amou e sofreu.
Voz, que jamais vibrou num soluço de mágoa,
Ao nosso coração nunca pode chegar...
Mas o pranto, ao cair duns olhos rasos de água,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.
Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.
Em tudo quanto existe o Sofrimento imprime
Uma augusta expressão... mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna imorredoira a Inspiração que passa.
É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
Dor sem resignação, Dor de estóico ou de santo,
Só de a vermos passar no tumulto da Vida
Deixa os olhos da gente enublados de pranto.
António Feijó, in 'Sol de Inverno'
Ainda a propósito do meu primeiro comentário, encontro neste poema alguma ressonância explicativa do "corpo em desaparecimento".
A Dor Tem um Elemento de Vazio
A Dor - tem um Elemento de Vazio -
Não se consegue lembrar
De quando começou - ou se houve
Um tempo em que não existiu -
Não tem Futuro - para lá de si própria -
O seu Infinito contém
O seu Passado - iluminado para aperceber
Novas Épocas - de Dor.
Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice
Para o Dr. João Boaventura:
Se para o nosso corpo em sofrimento
a dor chama a atenção, vendo-o gemer,
não é menos verdade que o prazer
tem por seu lado igual comportamento.
Quem não se lembra dos epuristas
e dos demais antigos hedonistas?!
JCN
Caríssimos,
Eu, amante da poesia, fico honrado por minhas crónicas terem esta elevação de comentários poéticos.
Assim que oportuno, escreverei sobre a "Dor", ela própria (não só a das costas) que tem substrato electro e neuroquímico.
Um cumprimento agradecido a todos.
António Piedade
Enquanto a dor redime e santifica
inquestionavelmente, por seu lado
talvez seja um grandíssimo pecado
dizer-se que o prazer nos dignifica.
JCN
A DOR MAIOR
Já fui provado pela dor maior
que um homem pode ter na sua vida:
a perda de uma filha estremecida
e da mulher que foi meu grande amor.
É dor que me retalha o coração
e me arrepanha os nervos noite e dia,
não me deixando assomos de alegria
em tão descomunal desolação.
Com suas usuais consequências,
não é somente dor de ordem moral,
do foro da alma e suas dependências.
É dor também do foro temporal
que me chega às entranhas de tal forma
que em chaga viva a carne me transforma!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Só Males São Reais, Só Dor Existe
Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.
Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?
Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira...
Mas, no que se não vê, labor perdido!
Quem fora tão ditoso que olvidasse...
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!
Antero de Quental, in 'Sonetos'
Compaginando com a "A dor maior" de João de Castro Nunes, e com o sentimento que só a dor entende:
Sem Remédio
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou ...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
Na Dor, a música é bálsamo. Gostaria de partilhar convosco o seguinte tema, de Edvarg Grieg, Varen (Canção da primavera)em duas interpretações sinfónicas magistrais e uma coral :
http://www.youtube.com/watch?v=3zGRQsYZE7U
http://www.youtube.com/watch?v=-7uMLhYnqXE&feature=related
e a coral
http://www.youtube.com/watch?v=7L-lUIQj2dY&feature=related
A Nostalgia pontua a Dor?
Abraço
António Piedade
Meu Caro Dr. João Boaventura
"Compaginando", em que bela companhia me colocou: irmãos no sofrimentos, primos afastados no talento! JCN
Que é a Nostalgia senão a Saudade em sofrimento? JCN
Não será antes a Saudade, a Nostalgia em Sofrimento?
Etimologicamente a Nostalgia é sempre dolorosa, uma dor do foro anímico, em derradeira análise; a Saudade, por seu turno, "essa eiró que se evade", é muitas vezes aprazível ("gosto amargo de infelizes", "delicioso pungir de acerbo espinho"). A Nostalgia anda de braço dado com a Melancolia: é sorumbática, bisonha e taciturna; a Saudade é radiosa, essa palavra branca sobre o azulado fundo das montanhas, na fantasia poética do genial chileno. Por mim, estou por tudo! JCN
Meu caro Dr. João Boaventura:
Entre a Nostalgia e a Saudade, dedico-lhe este meu poema de inspiração nerudiana("Puedo escribir los versos más tristes esta noche"):
ODE À TRISTEZA
Há dias, muitos dias, longos dias,
em que de alma tolhida de saudade
só me apetece, em minha intimidade,
compor poemas tristes, elegias.
Esgotei já, no meu dicionário,
todos os termos que encontrei à mão
para, de modo algum, dar expressão
às várias estações do meu calvário.
Hoje precisamente, mais que nunca,
sinto no peito, a destroçar-me a alma,
da nostalgia a férrea garra adunca.
Só a poesia a respirar tristeza
me suaviza o espírito, me acalma
e me devolve a paz da natureza!
JOÃO DE CASTRO NUNES
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