Novo texto de João Boavida, na sequência de outros sobre Jorge de Sena, já publicados no De Rerum Natura.
"Sabe de Hegel, de Sartre, de fenomenologia
mas andou na Rua da Sofia.
É inteligente, arguto, viajado
mas vive sempre com a aldeia ao lado.
Que há nestes portugueses que é como um sarro azedo,
um cheiro de vinagre ou carrascão de medo,
a que se agarram quais lapas ao Penedo
da Saudade? Não há filosofia
que salve quem andou na Rua da Sofia"
Este é um poema de Jorge de Sena, aparecido há pouco numas Dedicácias (Guerra e Paz) e “dedicado” a alguém de Coimbra. É muito interessante porque tem várias contradições, muito à moda de Sena, mordaz para tudo o que é português. Tal como todos nós.
Jorge de Sena, já o disse aqui, é um dos grandes vultos da literatura e da cultura do nosso século XX. Talento multiforme, riquíssimo, mas de verbo violento e ácido, algo truculento, às vezes mesmo caótico, apoiado numa energia imensa e numa capacidade intelectual fora do vulgar. É curioso que não tenha resistido a lançar a sua ferroada a Coimbra, servindo-se de alguém que «é inteligente, arguto e viajado», mas que, apesar disto, tem o grande defeito de viver «sempre com a aldeia ao lado». E mais, que «sabe de Hegel, de Sartre, de fenomenologia» mas, olha que azar, «andou na rua da Sofia». Nada a fazer, portanto.
Bem gostava de saber quem lhe teria inspirado o poema. Algum amigo, professor de filosofia – domínio que Sena expressamente admirava e lamentava não possuir, ele que tinha muitos talentos e que tanto gostava de os atirar à cara dos outros.
Mas, por que razão é que alguém, «arguto, culto e viajado» não se salva só porque tem a aldeia ao lado? Sena, que andou por várias cidades do mundo com livralhada e filharada às costas, à procura de uma cátedra de literatura portuguesa, não nos perdoava, pelos vistos, o vivermos (alguns) na Rua da Sofia, digamos assim. Mesmo que viajados e filhos de um povo que anda, e sempre andou, pelo mundo inteiro, esgravatando pela vida.
Talvez que o problema seja desse alguém ter a “sorte” de ter uma cátedra aqui, em Coimbra, e ele não (embora tenha estado perto disso, diga-se). Ou de ser versado em Hegel, fenomenologia e outras filosofias, coisa que ele admirava e invejava. Os humanos, mesmo os superiores, têm destes ressentimentos.
E por que não a filosofia na Rua da Sofia? Rua pensada para a cultura, cheia de colégios, que poderia servir de modelo a muitas cidades universitárias de hoje. E que só a falta de vista do Antigo Regime não transformou em prolongamento ideal da Universidade de Coimbra, no século XX. Libertando-a, é claro, dos acrescentos militares, administrativos, comerciais e outros que mais, que os séculos lhe foram pondo em cima. De qualquer modo, talvez nenhum lugar em Portugal se adequasse tanto, em filologia, ideia, história e arquitectura, à filosofia, como a Rua da Sofia.
Mas o problema de Sena poderá ser só, afinal, a necessidade de dizer mal de nós próprios, mesmo que, para isso, tenha que ser injusto atacando-nos no que de melhor temos. Há, em tudo isto, uma paranóia, que nós não vemos, mas que os estrangeiros descobrem logo, e consideram bastante estranha nos portugueses. E, já agora, que diria do grande Emanuel Kant, o maior filósofo da modernidade, que em toda a longa vida quase não saiu da sua cidadezinha de Könisberg?
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12 comentários:
Talvez Jorge de Sena fosse movido, pelo menos em parte, pelo ressentimento. Mas parece óbvio que as suas críticas têm, pelo menos em parte, alguma justificação.
Seja como for, não é verdade que os portugueses tenham a 'paranóia' de dizer mal de si próprios. Isso é um mito. Na verdade, em Portugal existem poucos debates, poucas divergências e poucas críticas.
E - infelizmente - é frequente, quando existe um português especialmente crítico (como Jorge de Sena, Vasco Pulido Valente, Guilherme Valente, Medina Carreira, etc.), aparecer logo alguém a chamar-lhe ressentido e a acusá-lo de não reconhecer as coisas boas que há em Portugal.
Na minha opinião, precisávamos de mais pessoas como Jorge de Sena, quanto mais críticas e azedas melhor!
Antes crícas azedas que docilidades servis e optimismos bimbos e deslumbrados.
A interpretação parece-me um bocado desinterpretada!!
Julgo que o Sena queria dizer que há pessoas que até viajam e sabem das coisas mas isso depois não se reflecte na maneira como vivem a vida e aplicam aquilo que aparentemente conhecem, que isso não lhes serve de grande coisa porque continuam a viver como se vivessem na aldeia, ou na rua Sofia. Há muitas pessoas que saem uns anos, que estudam, e que quando regressam voltam para o mesmo estilo de vida, o que interessa é o empreguinho, a catedrazinha, e o resto que se lixe, o fazer melhor, o contribuir para as mudanças de mentalidade, que são coisas que bem precisamos.
Dizer que o Sena poderia ter inveja de ter uma cátedra em Coimbra é um bocado ridículo, ou até muito! É quase o mesmo que dizer que o Saramago teria trocado todo o seu trabalho mais o Nobel por uma cátedra em Coimbra!! Há catedráticos em Coimbra que são uns desconhecidos, que não têm trabalho de grande relevo, e que ninguém se vai lembrar deles no futuro, se calhar a maioria deles, mas o mesmo não se pode dizer do Sena.
Aliás, acho o inverso, Coimbra é que deveria ter inveja de não ter um catedrático como o Sena. E se o homem nunca pode regressar ao seu país porque esteve sempre tapado por uns mecos e pela maneira típica de dar os tachos a quem convém e não a quem os merece, não me admiro que ele tivesse algum ressentimento sobre essa mentalidade da rua Sofia, mas não sobre ter o tacho da cátedra em Coimbra, valha-vos deus.
Muito interessante quer o artigo quer os comentários.
Julgo que o ácido e azedume acutilantes são sempre necessários para fazer pensar.
Este artigo soube-me bem porque há pessoas que gostam de rotular os outros ...
Parece um derby Lisboa/Coimbra,
Cada cidade com a sua especificidade. Coimbra há-de sempre fazer lembrar um foco de conhecimento, um centro onde nasciam políticos. O poder não está do lado da cidade e os políticos têm medo de Coimbra por isso a têm sempre desprezado (de há uns anos para cá).
Ser um jardim florido é o encanto de Portugal.
Concordo em parte com o Carlos Pires, nós temos uma grande falta de espírito crítico, basta ler jornais e blogues para se perceber isso. E quando alguém faz uma crítica com pés e cabeça é posto de lado, ou os comentários são apagados.
O que nos falta é orgulho e livramo-nos do complexo de inferioridade. Há outros países em que pessoas também dizem mal deles, basta olhar para os britânicos, são do pior, mas também são orgulhosos.
Não sei é que como é que o Sena, que tinha uma cátedra nos USA, podia ter inveja de uma catedrazeca em Coimbra!
Mas ainda hoje é assim, temos portugueses com curriculos excelentes que estão lá fora apenas porque estão tapados por pessoas mediocres que estão instaladas nas universidades portuguesas, ou não é assim, Helena? E aqueles professores convidados, convidados para toda a vida, que têm apenas um mestradozeco, e que são convidados porque são, por exemplo, a esposa do reitor, ou do doutor xpto? Disso não se fala aqui, o que é pena.
E que tal criticar essas coisas em vez de estar a perder tempo a bater no Sena? É que as universidades portuguesas são um reflexo da mediocridade nacional, mas como vocês são todos uns doutores instalados eu vou percebo...
luis
Um tipo que sabe umas coisitas mas no fundo tem sempre aquele ranço do saloio de Coimbra.... então não estão a ver ? É o Fiolhais!
A poesia de Jorge de Sena é simplesmente execrável: é a reacção biliosa de um excluído, como tanto outros que andam por aí a envergonhar Portugal. Só numa coisa tem razão: é quando ensinua que na douta universidade de Coimbra não faltam cavalgaduras... de borla e capelo. JCN
Em Busca
Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.
Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.
A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…
E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…
José Duro
In "Fel"
Doente
Ó morte vai buscar a raiva abençoada
Com que matas o mal e geras novos seres...
Ó morte vai de pressa e traz-me os poderes,
Que eu canso de viver, quero voltar ao nada.
Escorre-me da boca a voz que'inda murmura,
Arranca-me do peito o coração enxangue,
Que eu hei-de dar-te em troca os restos do meu sangue
Para o negro festim da tua fome escura...
Ó Santa que eu adoro, ó Virgem d' olhar triste,
Bendita sejas tu, ó morte inexorável,
Pelo mundo a chorar, desde que o mundo existe...
Dá-me do teu licor, quero beber a esmo...
Que eu vivo ao abandono e sou um miserável
Aos tombos pela Vida, em busca de mim mesmo!
José Duro
in Fel.
Quando Helena Damião refere que,
"Há, em tudo isto, uma paranóia, que nós não vemos, mas que os estrangeiros descobrem logo, e consideram bastante estranha nos portugueses."
eu vejo no Fado a exteriorização dessa paranóia, daí a estranheza pontuada pelos estrangeiros
Na poesia, como no Fado, ou no Português, a mesma
Nostalgia
Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p'las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!
Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!
O meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!
Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!
Florbela Espanca
in "Charneca em Flor"
PS - No meu anterior comentário citei parte do texto de Helena Damião, esquecido de que o post é de João Boavida, e Helena Damião, apenas editora.
As minhas desculpas
O país é medíocre e o homem apenas se limitou a enfatizar a verdade. Não foi o único como observado nos comentários - muitos mais partilham opiniões semelhantes.
Uma vez cansei-me de procurar deste tipo de opiniões (que não são diferentes da minha) no meio nacional e busquei-as na cultura da estranja.
No decurso da demanda encontrei uma página onde alguém colocou uma resenha escrita pelo economista Frédéric Bastiat ainda antes do ano de 1850. De acordo com ela, o autor considera o povo português, isto é, o nosso povo, é um povo de preguiçosos, indolentes, desordenados, que se alimenta das prebendas, das sinecuras e dos abusos.
Isto tudo, na primeira metade do século XIX. Pura e simplesmente, nada mudou.
O adivinho Nostradamus, na sua quadra 100 da centúria X já adivinhava que o povo lusitano não iria ficar contente, porventura por ser estúpido e abrutalhado (na minha humilde opinião).
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