Texto na sequência de outro intitulado A construção das ciências.
Percebi, ao longo do ano Darwin, que muitos estudantes universitários diziam nunca terem estudado a teoria da evolução, e que aqueles que diziam tê-la estudado punham-na em pé de igualdade epistemológica com a explicação criacionista.
Partindo do princípio que tais respostas não decorrem do acaso, procurei saber o que se passa no nosso sistema educativo que condiciona esta última circunstância depois de alertada por um estudante para que essa paridade entre uma teoria com provas dadas e uma mera crença se deveria ao facto de, em manuais escolares de Biologia do Ensino Secundário, ambas serem apresentadas como teorias e com igual destaque.
Num primeiro momento, falei com Palmira Silva (que, neste blogue, tem feito a clara e oportuna denúncia da infiltração do criacionismo nos currículos escolares) que me indicou um de livro a que deu destaque no De Rerum Natura: Evolução e Criacionismo: uma relação impossível da autoria de A. Gaspar, de T. Avelar e de O. Mateus (mais propriamente, o Capítulo 6 - Criacionismo e Sociedade no Século XX -, sobretudo as páginas 158-159). Falei também com professores de Biologia. De seguida, analisei o programa e alguns manuais (de estudo e de preparação para exames).
Em resultado desta averiguação, penso ter compreendido a referida “concepção alternativa” dos estudantes (eufemismo para designar concepções erradas de fenómenos e da sua explicação que têm uma elucidação aceite pela comunidade científica).
1. Começo pelo Programa de Biologia e Geologia para os 11.º ou 12.º anos dos Cursos Científico-Humanísticos de Ciências e Tecnologias (2003). A unidade 7 é dedicada à Evolução Biológica. O tópico 2 refere-se aos Mecanismos de Evolução, incluindo dois sub-tópicos: Evolucionismo vs Fixismo e Selecção natural, selecção artificial e variabilidade.
Suponho que para orientar os professores, encontra-se, na página 11, um quadro cujo título é: Como é que a Ciência e a Sociedade têm interpretado a grande diversidade dos seres vivos?
Trata-se de um título que, como se sabe, ganha sentido no âmbito da Perspectiva CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) e CTSA (Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente), mas que, apesar de se ter imposto ao nível do curricular, não deixa de ser questionável.
É evidente que a ciência, neste caso a Biologia, não se pode desligar da sociedade em que emergiu e se tem desenvolvido, mas esta é uma reflexão de carácter epistemológico, e o que se deve destacar quando se ensina e se aprende ciência são os conhecimentos científicos e as capacidades que a abordagem científica permite desenvolver.
Assim, em Biologia, não pode ser dado destaque semelhante à perspectiva sociológica e científica, como sugere o referido título, sob pena de se retirar especificidade a esta última, no contexto disciplinar em que inequivocamente o devia ter.
Tal não impede, obviamente, a contextualização das teorias científicas que se pretende que os alunos aprendam, bem pelo contrário as suas vantagens afiguram-se óbvias. No caso da teoria da evolução, será de todo o interesse que conheçam a sociedade onde o trabalho de Charles Darwin teve lugar, o acolhimento que recebeu na altura, posteriormente e no presente, etc. Mas tudo isso são aspectos que concorrem para que os alunos compreendam melhor a teoria e a sua importância no seio da ciência e do saber que, como seres humanos, conseguimos conquistar.
2. Nesse mesmo quadro (aspecto 2, à direita) está escrito algo muito inquietante: “Não há consenso sobre as causas da diversidade dos seres vivos. As teorias evolutivas explicam essa diversidade pela selecção dos organismos mais adaptados, razão pela qual as populações se vão modificando.”
No livro em referência assinala-se que a "expressão não há consenso, apesar de se reportar a mecanismos evolutivos, pode transmitir a ideia, sobretudo nas mãos de professores menos bem preparados, de que a falta de consenso se aplica à evolução propriamente dita" (página 158).
Até porque, e isto também se salienta no livro, na coluna relativa aos Conteúdos atitudinais, evidencia-se a necessidade de "reconhecimento de que o avanço científico tecnológico é condicionado por contextos (ex. sócio-económicos, religiosos, políticos...), geradores de controvérsias, que podem dificultar o estabelecimento de posições consensuais."
Entendo, pois, que o comentário dos autores tem a maior pertinência, porquanto tal expressão, tão cara ao pensamento pós-moderno que nos envolve, constitui uma fonte de equívocos epistemológicos. Efectivamente, muitos são os que consideram que o consenso científico não decorre só nem principalmente de evidências empíricas, de factos objectivos, mas de uma espécie de acordo mais ou menos retórico entre os cientistas quando é preciso decidir o que é a verdade. Acordo esse que, nesta medida, se encontrará marcado pelas mais variadas dinâmicas e interesses sociais.
3. A mistura das perspectivas sociológica e científica acentua-se quando, no referido programa, se recomenda a "construção de opiniões fundamentadas sobre diferentes perspectivas científicas e sociais (filosóficas, religiosas...) relativas à evolução dos seres vivos”.
Pergunta-se no livro: "o que quererá dizer isto? Que o professor deverá ensinar a perspectiva da religião ou da filosofica sobre a evolução numa aula de ciência? (página 158).
A interpretação que faço da frase, coincide com a dos autores: é que se deve ensinar a teoria da evolução bem como explicações de outro teor epistemológico, pois só assim os alunos ficarão aptos a construírem “opiniões fundamentadas sobre diferentes perspectivas científicas e sociais (filosóficas, religiosas...) relativas à evolução dos seres vivos”. Sublinho que a minha interpretação decorre do uso das palavras opinião e fundamentada que me parecem cruciais… Na verdade, não há opiniões fundamentadas sem um conhecimento profundo do objecto ou objectos em relação aos quais se pede aos sujeitos que se pronunciem, requerendo-se, neste caso, um conhecimento aprofundado e equilibrado de teorias e de crenças.
4. Ainda no mesmo quadro 7 verifico uma curiosa coluna que foi designada por “Evitar”, na qual se pode ler: (evitar) “O estudo pormenorizado das teorias evolucionistas” e “A abordagem exaustiva dos argumentos que fundamentam a teoria evolucionista”.
Mais uma vez recorro a comentário patento no livro: "parece uma opção inquietante que pode comprometer a solidez dos alicerces do conhecimento das ciências naturais" (página 159).
Sim, parece, de facto, uma opção inquietante, até porque, se dúvidas ainda restassem quanto ao destaque a dar à teoria da evolução face a interpretações religiosas ou outras, elas ficariam aqui esclarecidas: é de evitar, no ensino secundário, pormenorizar, fazer uma abordagem exaustiva do evolucionismo na disciplina de… Biologia.
5. A análise que fiz de manuais, que não representam a totalidade dos que existem, confirmou esta enigmática orientação programática? Devo dizer que os que consultei vão nesse sentido.
Naqueles em que me detive aborda-se o criacionismo e outras explicações não científicas, abordam-se também teorias científicas que precederam a de Darwin (como é o caso da de Lamarck). O problema é o destaque: enquanto uns (os de estudo) tendem a referir estas explicações e teorias para fazer um enquadramento do evolucionismo; outros (os de revisão e preparação para exames) destinam semelhante número de caracteres a todas as abordagens, científicas ou não.
6. O mais grave que vi em ambos os tipos de manuais foi, no entanto, a utilização da designação teoria reportada ao criacionismo e ao evolucionismo. Além de, mais uma vez, se assemelhar ciência e crença, o que sob o ponto de vista epistemológico é um erro lamentável, tal decisão acarreta consequências óbvias: induzem-se os alunos na confusão que detectei e que motivou este texto.
Referência completa do texto citado: Gaspar, A., Avelar, T. & Mateus, O. (2007). Criacionismo e Sociedade no Séc. XX. In Evolução e Criacionismo: Uma Relação Impossível. Lisboa: Quasi, páginas 133-160.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
CARTA A UM JOVEM DECENTE
Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente . N...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
7 comentários:
Fico grato por ver que "alguém" começa a olhar para os programas das disciplinas científicas do ensino secundário, em particular para os que dizem respeito à biologia. Espero que também cheguem ao programa do ano anterior... Porém, em relação ao saber/ignorância dos alunos relativamente ao evolucionismo, em particular, por aquilo que conheço, os professores fazem um bom trabalho. No entanto, o que os professores dizem e aquilo em que insistem, extensivo à instituição escola, passou a não ter crédito no imaginário de muitos alunos e das pessoas em geral. Claro que há sempre um ou outro aluno que apreende o fundamental. Mas a escola e a sua imagem degradaram-se de tal modo que a eficácia, quero dizer, confiança, estão muito abaladas. E há mesmo muitas situações em que os professores têm medo (real) de lidar com os alunos. E por isso chegam mesmo a não contrariar as ideias mais abstrusas que alguns fazem questão de manter, mesmo depois de devidamente re-explicadas. Ora, quando se trabalha assim... É por isso que a avaliação do sistema de ensino e dos professores devia ter outros pressupostos...
Caro José Batista da Ascenção
Corroboro o que escreveu no seu comentário. Da conversa que tive com professores a propósito do assunto retenho o que me disse uma professora com quase vinte e cinco anos de ensino que tenho por excelente profissional: "Pela minha parte, deixei de saber ensinar. O que pensava que estava certo, dizem-me que está errado".
Não, não penso que a qualidade de ensino dependa apenas do desempenho docente em sala de aula. Sabemos que muitos factores o condicionam, afigurando-se-me o currículo (programas, manuais e outras orientações) como um dos mais decisivos dado que, obviamente, os professores têm de segui-lo.
Apesar de não achar muito correcto, socorrer-me de exemplos pessoais, no caso desta discussão, depois de muito insistir com alunos universitários na diferenciação entre teoria e crença, particularizando no evolucionismo e no criacionismo, reconheço o meu amplo fracasso. Há uma formatação intelectual que decorre de um modo de pensar instalado, relativamente ao qual pouco se pode fazer, até porque, diz-se em muito documentos provenientes da tutela, há que respeitá-la.
Maria Helena Damião
Cara Helena Damião,
Nos programas das "disciplinas" de "informática" é dito: "a disciplina (...) não pode ser vista como uma disciplina de informática (...)"!
Quando começamos a ler o texto com atenção reparamos que se misturam objectivos com resultados, ciência com mitologia, matemática com sociedade, etc., etc.!
É o pós-modernismo aplicado!
Creia que lhe ficaria muito grato se, em duas palavras, me elucidasse acerba do que entende por pós-modernismo em termos de pedagogia. JCN
As teorias científicas, sejam elas quais foram, acentam na crença que o mundo (ou a natureza) é racional. Para fundamentar esta crença basilar da ciência podemos pensar que o mundo assim é pois foi criado por um ser, ele mesmo, racional. Um ser que teve a infinita bondadade de nos conceder a capacidade de entender a sua criação. Muito apressadamente, vemos esta tese em Descartes ou em Leibniz, por exemplo. Logo, como é fácil perceber, não existe uma oposição radical entre crença e teoria, entre ciência e deus, como aqui se quer tantas vezes fazer de doutrina.
Não me vou debruçar sobre os actuais (penosos) programas das Ciências no ens. secundário (para isso estaria aqui muitas horas a dissertar e já basta as horas que eu, como prof. do superior, gasto a discutir saudavelmente esse assunto com a minha esposa, prof. do secundário).
Antes deixo apenas este link, mais uma acha para a discussão deste post em particular:
http://physicsandphysicists.blogspot.com/2010/01/shock-and-awe-of-creation.html
«não há opiniões fundamentadas sem um conhecimento profundo do objecto ou objectos em relação aos quais se pede aos sujeitos que se pronunciem»
100% de acordo.
Mas, não será que se polariza demasiado entre o conhecimento sólido, abrangente, aprofundado de uma disciplina e a mestria de um conhecimento generalista sobre todas as áreas do conhecimento?
Não é nada fácil ser muito competente nas duas facetas; só um reduzidíssimo número o consegue, penso eu.
Américo Tavares
Enviar um comentário