domingo, 3 de janeiro de 2010

A construção das ciências

As incursões que tenho feito por manuais escolares adoptados no nosso sistema educativo levam-me a compará-los com outros que se vão publicando pela Europa e procurar o que se escreve acerca deles.

Adoptando como parâmetros de comparação aspectos de cariz epistemológico, pedagógico e gráfico, tenho encontrado manuais de qualidade, mas a regra está longe de ser essa… Confirmo esta minha conclusão com uma nota de Alan Sokal & Jean Bricmont relativamente à orientação epistemológica de um manual de ciência belga. Pelo extracto que se segue, percebe-se que, numa área curricular onde os alunos deviam ter por segura a noção de facto científico, ela é... transformada numa interpretação!

“Num manual destinado aos professores do liceu belgas [da autoria de Gérard Fourez, filósofo das ciências muito influente, pelo menos na Bélgica, relativamente às questões pedagógicas. A sua obra, La construction des sciences, 1992, está traduzida em diversas línguas], visando explicar «alguns conhecimentos de epistemologia», pode ler-se a seguinte definição:

Facto: Aquilo que geralmente se designa por facto é uma interpretação de uma situação que, pelo menos no momento da sua ocorrência, ninguém põe em causa. Convém recordar que, como se diz na linguagem corrente, um facto estabelece-se, o que mostra bem que se trata de um modelo teórico que pretendemos apropriar.

Exemplo: As afirmações «o computador está em cima da secretária» ou «quando se põe a água a ferver, ela evapora-se» são consideradas proposições factuais no sentido de que ninguém, no momento em que ocorrem, pretende contestá-las. Trata-se de proposições de interpretações teóricas que ninguém põe em causa. Afirmar que uma proposição segue um facto (ou seja, que tem um estatuto de proposição factual ou empírica) é sustentar que não há praticamente contestação a essa interpretação no momento em que se fala. Mas um facto pode ser posto em causa.

Exemplo: Durante séculos considerou-se um facto que todos os dias o Sol girava em volta da Terra. O surgimento de outra teoria, como a da rotação diurna da Terra sobre si mesma, conduziu à substituição desse facto por outro».

Fourez et al., 1977, 76-77 in Sokal, A. & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva, 103-104.

16 comentários:

Anónimo disse...

«Afirmar que uma proposição segue um facto (ou seja, que tem um estatuto de proposição factual ou empírica) é sustentar que não há praticamente contestação a essa interpretação no momento em que se fala. Mas um facto pode ser posto em causa.»


Mas haverá alguém que pense que a proposição «num triângulo plano a soma das amplitudes dos seus ângulos é 180º» é um facto e que como tal que poderá vir a ser posto em causa?

Ou este exemplo não vale, porque se defende que a Matemática está fora do âmbito científico?

Américo Tavares

José Batista da Ascenção disse...

Nos tempos que correm, obrigam-nos a ensinar ciências através de metodologias impostas autoritariamente por outras áreas (auto-)denominadas de "ciências", que se contituiram um pouco à vontade dos "fregueses" que no-las querem impor, mesmo que bem intencionados. E com sucesso (deles), embora a prazo e ingloriamente, o têm conseguido. O pior é/foi o prejuízo causado a tantos durante tanto tempo. Que, tenho a certeza, não será eterno. Mesmo que eu já cá não esteja para ver. E contento-me com essa perspectiva. Entretanto vou-me sentindo grato e elogiando, sempre que posso, pessoas como Nuno Crato e outros.

Manuel de Castro Nunes disse...

Talvez tenhamos atingido o estádio em que deveríamos reformular o universo das denominações. O uso transversal e acrítico da denominação «facto» é terrivelmente perverso, porque «facto» adquiriu uma carga semântica de «autoridade» que cativa e verga o «receptor».
A denominação «facto científico», acelera a ambiguidade. No texto reproduzido transmigra-se do «género» teórico para o empirico do valor semântico de facto, sem qualquer explicação.
Se substituíssemos a denominação facto pela de ocorrência, em dados contextos, progrediríamos um pouco na afinação dos utensílios conceptuais.
Todavia, em meu entender, deveríamos evitar que os nossos alunos tivessem o dever de ter por segura a noção de «facto científico», seja o que for que denomina. Os professores não deviam sentir também esse dever.
Uma proposição é uma ocorrência retórica. É também uma ocorrência «histórica». Independentemente da perenidade da sua validade consensual.
Seja, para contestar algumas reincidências no questionar recalcitrante da validade das «ciências da educação», que continuo a prefri denominar como pedagogia ou pensamento pedagógico, parece-me óbvio que não consigo distinguir onde acaba a epistemologia do conhecimento e a epistemologia das formas da sua transmissão ou comunicação.
Seja, o conhecimento só se valida através da forma da sua comunicação ou transmissão, indispensável mesmo para gerar as conições da sua aplicação.
E não estou a debitar doutrina. Estou a questionar-me a mim próprio. Transmito-o porque pode ocorrer que algúem partilhe as minhas dúvidas.

Anónimo disse...

Acho não ter grandes dúvidas sobre o que é um facto científico.

A minha dúvida principal é saber se um teorema, como o de Pitágoras (já agora, parece que lhe é atribuído, mas não se deve à sua pessoa, mas para o caso, é irrelevante) é possível de vir a ser substituído, por estar errado, por outro?
Eu respondo taxativamente que não.

Se me disserem que esse teorema é um caso particular de outro mais geral, concordo. Mas isso não infirma a verdade do dito Teorema, que todos nós aprendemos.

Finalmente, a Matemática é uma Ciência ou não?
Tenho uma sondagem recente no meu blogue, com a referenciação de um link para um ensaio sobre este tema.
Convido os eventuais interessados a passarem por lá. Basta clicar no problemasteoremas.

Américo Tavares

Geometra contorcido disse...

«num triângulo plano a soma das amplitudes dos seus ângulos é 180º» é um facto e que como tal que poderá vir a ser posto em causa?

No plano hiperbólico a proposição é falsa e como tal foi posta em causa com sucesso.

Anónimo disse...

Espere: em disse triângulo plano, na acepção clássica, de Euclides, como penso que seria claro. Mas se é essa a objecção, reformulo o enunciado:

«num triângulo plano, no sentido da geometria euclideana, a soma das amplitudes dos seus ângulos é 180º» é um facto e que como tal (que) poderá vir a ser posto em causa?

Não acredito!

Américo Tavares

Manuel de Castro Nunes disse...

Um teorema, em si, é um facto?
A duração da sua validade um facto de «grande duração»?
A História das Ciências é uma Ciência Natural ou Exacta? Ou um domínio específico da História?
Não faz falta à investigação científica a filosofia? Nem que seja para administrar as denominações? E para questionar, porventura, a sua finalidade e a oportunidade e foma da sua transmissão?

Anónimo disse...

Caro ArtemInvenite Manuel de Castro Nunes,

«Um teorema, em si, é um facto?»

Penso que um teorema matemático é um dado definitivamente adquirido, nem mais, nem menos.
O teorema de Pitágoras nunca será refutado, porque foi demonstrado de forma lógica.

Às restantes questões é mais difícil de responder.

Apenas digo que as áreas de especialização matemáticas são tantas, tão inter-relacionadas, e só domináveis ao fim de alguns anos, que para se poder dar uma contribuição, ou seja, produzir matemática nova, poucos o conseguem fazer, a um nível relevante.

Além disso esses poucos estão tão concentrados no seu objecto de investigação, que pode durar, às vezes uma década, para produzir aquele único resultado que buscam, que não se preocupam com a filosofia da matemática (ou Meta-Matemática).

Só, mais tarde, quando deixam de ter a criatividade necessária para se dedicarem à investigação matemática produtiva que, por regra, é de curta duração. Simplesmente não têm tempo para tal, quando jovens.

Américo Tavares

Anónimo disse...

Na crítica ao excelente livro (gigantesco)

"The Princeton Companion to Mathematics"

em

http://larecherche.typepad.fr/le_blog_des_livres/2009/02/the-princeton-companion-to-mathematics.html

diz-se:

«Voilà un ouvrage vraiment remarquable qui restera une référence pour tous ceux intéressé par cette science. L’introduction (72 pages quand même) se contente (sic) de présenter ce que signifie « faire des mathématiques » et présente les principales définitions générales.»

Veja-se a importância dada a « faire des mathématiques »!

Américo Tavares

Manuel de Castro Nunes disse...

Continuo a pensar que temos que aferir denominações. Começa por dizer que o teorema de Pitágoras é um dado (não compreendo se há para o caro amigo jusaposição entre dado e facto) irrefutável, associando-lhe grande duração.
Finalmente estabelece a dicotomia entre a matemática produtiva e a filosofia, parecendo enaltecer a primeira, de curta duração para mais, em desprimor da segunda.
Teria que deduzir que o teorema de Pitágoras é uma filosofice improdutiva de grande duração?
Em lógica, nada há de irrefutável que não possa ser refutado. É neste aparente paradoxo que reside a validade da lógica. E é por isso que é uma disciplina dinâmica. O irrefutável só surge no exercício da refutação.
É também imprevisível, em cada contexto e circunstância, quais possam ser os itinerários da refutação. Por isso o irrefutável só pode ser pronunciado presumindo um contexto e uma circunstância.
É o que me parece...
Mas insisto em que não avançaremos significativamente sem aferirmos denominações. Porque continuo sem compreender o que é um facto científico. Seja, o que denomina?

Anónimo disse...

Penso que as denominaçoes são realmente importantes.

Quando escrevi, como exemplo, porque poderia ter referido outro teorema recente, como a conjectura de Poincaré, demonstrada há muitos poucos anos por Grisha Perelman, que o teorema de pitágoras era um dado, foi no sentido de ser um conhecimento matemático adquirido, como o passou a ser o da conjectura de Poincaré. E escrevi definitivamente, porque, para mim é inimaginável que os enunciados desses teoremas e respectivas demonstrações venham a ser postas em causa, no futuro. O teorema de Pitágoras, porque compreendo a sua demonstração, a conjectura de Poincaré (ou teorema de Perelman, como talvez venha a ser designada daqui a uns anos), porque, não me podendo pronunciar quanto à validade da sua demonstração -- é de uma área e de um grau de profundidade que não domino e talvez nunca venha a dominar -- ela já foi validada por grupos de especialistas. Em consequência e coerentemento é minha opinião que o teorema de Pitágoras é uma proposição de verdade eterna.

A dicotomia que diz eu ter estabelecido é uma mera apreciação dentro do que conheço, e que admito que não seja eventualmente correcta, mas que não pretendeu de maneira nenhuma, da minha parte, fazer uma valoração positiva ou negativa, quanto ao mérito relativo, duma e doutra. Ou seja, coloco-as ao mesmo nível. O que verifico, se bem vejo o que se passa, é que as descobertas matemáticas são normalmente feitas por pessoas relativamente jovens, que à medida que envelhecem são normalmente menos produtivas, passando, por isso, muitas vezes, a ensinar, escrevendo, aos mais novos, aquilo que bem dominam, ou a interessar-se mais pelas questões que designei por meta-matemática. Mas há várias excepções, como eu tudo. E a transmissão de conhecimentos, ou a reflexão sobre as questões fundacionais, ou as relacionadas com as outras áreas do saber, ou a elas adjacentes ou tangenciais não as considero como menos nobres do que demonstrar novos teoremas importantes.

Sobre a sua afirmação de que em «lógica, nada há de irrefutável que não possa ser refutado. É neste aparente paradoxo que reside a validade da lógica. E é por isso que é uma disciplina dinâmica. O irrefutável só surge no exercício da refutação.» tenho de reflectir longamente sobre o assunto para o entender, por nunca ter pensado sobre ele. Claro que não o ponho em causa, até por isso mesmo.
A parte restante do seu comentário aceito-a, em geral, mas não estou a ver quais os contextos e as circunstâncias que, no caso particular da matemática, poderão levar à refutação dos teoremas hoje aceites.
Achei o seu comentário bem estimulante e não pretendo, de maneira nenhuma, dizer que o que penso é a verdade. Admito estar equivocado.

Américo Tavares

Manuel de Castro Nunes disse...

Caro Amigo.

Não se trata de saber quem está ou não equivocado. Trata-se de ir aprofundando matérias que penso cruciais. Também não sei se o equivocado sou eu. Compreendi claramente agora o que pretendia transmitir com os exemplos. E obrigar-me-á a reflectir também.
Por vezes penso no que poderia acontecer seu um matemático fosse chamado a arguir uma tese de doutoramento ou filosofia. E concluo que confrontaria a história e a filosofia com questões surpreendentes. Não tenho a mínima dúvida.
É pena que as disciplinas do saber não dialoguem mais.

Anónimo disse...

Pitágoras

Manuel de Castro Nunes disse...

Caro Amigo.
Este post já leva demasiados comentários, poderemos estar a maçar os circunstantes. Vamos pensar. Continuaremos a abordagem a propósito de outro tópico. Concorda?

Anónimo disse...

Caro Amigo.

Concordo sim.

Américo Tavares

Anónimo disse...

Concordo, sim.

Américo Tavares

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...