quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Música nos genes
Continuação da série de artigos de António Piedade, publicada antes em "O Despertar" (desta vez sobre a música dos genes, em vez dos vírus):
A propósito do dia Mundial da Música, instituído em 1975 pelo International Music Council (ver aqui) sob o patrocínio da UNESCO, e que, desde então, se comemora anualmente no primeiro dia de Outubro, achei oportuno interromper a série, inacabada, sobre os vírus e divulgar um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido por Gil Alterovitz, doutorado em Engenharia Eléctrica e Biomédica pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard e pela Divisão de Ciências e Tecnologias da Saúde do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (em inglês, Massachusetts Institute of Technology, MIT).
Este investigador desenvolveu, utilizando métodos Bayesianos (ver aqui), uma ferramenta de análise estatística de bases de dados bioquímicos e criou uma aplicação bioinformática que gera sons e gráficos coloridos, quais arranjos orquestrais acompanhados por fogo de artifício, a partir da informação do tráfego de proteínas que interagem entre si em milhares de vias metabólicas intracelulares (ver aqui). Estas vias, quais leitos por onde flui a informação codificada nos genes até à foz de uma qualquer função fisiológica, formam uma astronómica rede de interacções interdependentes entre proteínas e metabolitos, permitindo à célula um controlo fino dos processos vitais.
A ideia inicial de Gil Alterovitz foi alimentada pela grande torrente de informação que adveio do mapeamento do genoma e, principalmente, pela necessidade de entendermos como é que cerca de um milhão de proteínas (ver aqui), forjadas a partir da informação codificada nos cerca de 25 mil genes que o Homo sapiens possui (ver aqui), interagem entre si.
Existe, simultaneamente, um complexo sistema que regula quais os genes que devem estar activos num determinado momento (ou seja, a serem transcritos para modelar a síntese das proteínas que codificam) e quais os que devem ser, ou permanecer, desactivados. Exemplo geral, é esta partitura de activação/desactivação genómica, ou epigenoma, que vai dirigir a acção de inúmeros factores proteicos que, interagindo entre si, vão, em última instância, fazer com que umas células se diferenciem em células sensoriais auditivas e outras nas diferentes células que nos permitem ter o sentido da visão.
Quando algo corre mal, no caso de uma doença com origem no genoma ou no epigenoma, isto é, na regulação daquele, pode acontecer que uma ou mais proteínas sejam sintetizadas com erros, ou não sejam de todo sintetizadas, o que ocasiona interrupção no fluxo de interacções proteómicas e metabólicas na célula. Pense no caso da produção de insulina por parte das células por isso responsáveis no pâncreas, modelada pela presença ou ausência de estímulo para a sua síntese e libertação.
Vamos utilizar este exemplo como cenário de fundo para explicar a aplicação bioinformática desenvolvida por Alterovitz. Imagine que atribuiu sons e cores diferentes aos genes e proteínas envolvidas na síntese de insulina, que esse sons e cores mudam consoante a activação ou desactivação desses genes e que as suas tonalidades também mudam dependendo das interacções detectadas entre proteínas nas vias metabólicas associadas à insulina. Se reunir toda esta informação numa base de dados e utilizar modelos estatísticos preditivos para desenvolver uma aplicação bioinformática das interacções epigenómicas e proteómicas que possuem uma maior probabilidade de, no momento escolhido, estarem a acontecer, então poderá visualizar, através de gráficos e sons gerados por computador, um “fotograma” das redes de informação para a síntese de insulina naquele momento. Se agora estabelecer um período de tempo de monitorização e utilizar software de animação 3D, então poderá “ver” a dinâmica do tráfego intracelular e “ouvir” a sua própria banda sonora. Desta forma, poderá distinguir o ambiente visual e sonoro característico da produção de insulina daquele outro em que esta é inibida. Por outras palavras, conseguirá hipoteticamente distinguir uma célula sã de uma outra doente. Veja o vídeo de uma simulação deste género no sítio do YouTube (aqui).
Para além do aparente aspecto lúdico, é muito útil apresentar desta forma a informação da dinâmica bioquímica característica da vida. Esta e outras aplicações similares da bioinformática aos processos celulares complexos em conjunto com o desenvolvimento vertiginoso das tecnologias de computação, permitirá, num futuro próximo, mudar as plataformas de comunicação entre médicos e pacientes: em vez de uma lista com valores da última análise bioquímica ao sangue, o paciente poderá receber no seu telemóvel (ou no seu substituto de amanhã) uma animação multimédia 4D que representa, visual e musicalmente, o estado da sua saúde celular!
Da mesma forma, permitam-me a graça, terei a oportunidade de o convidar a assistir, num futuro dia 1 de Outubro, à “Sinfonia Epigenética Concertante”, autoria das vias metabólicas existentes nas minhas células, as quais, devido à minha individualidade genética, possuem cambiantes que as tornam suficientemente distinguíveis das do leitor.
António Piedade
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