terça-feira, 13 de outubro de 2009
IMAGINAÇÃO, CIÊNCIA E ARTE 3
Continuação da série começada aqui e continuada aqui:
3. A teoria da relatividade e o cubismo
Vale a pena tentar aprofundar o paralelismo entre a relatividade e o cubismo quanto mais não seja para dar um exemplo do paralelismo entre os processos criativos na ciência e na arte. Einstein e Picasso nunca se encontraram pessoalmente apesar de terem aparecido juntos na peça de teatro “Picasso e Einstein”, do norte-americano Steve Martin [11, 12], que foi representada , no Teatro da Trindade em Lisboa em 2005, quando se comemorou entre nós e em todo o mundo o centenário não só da teoria da relatividade restrita como dos principais trabalhos de Einstein, com encenação de Rui Mendes (devem aqui referir-se trabalhos como [13, 14], que tratam da rica abordagem que o teatro tem recentemente feito de temas científicos). Mas o que têm em comum Einstein e Picasso, para além do facto de de terem sido contemporâneos e de ambos serem considerados grandes génios?
Como via Einstein o mundo? Einstein, tal como os outros cientistas, via o mundo físico com os olhos da sua mente antes de formalizar essa visão através de fórmulas matemáticas e de palavras escritas. A imagem mental precedia, segundo o próprio declarou, outras imagens. Foi o jovem Einstein quem procurou responder à questão “como é o mundo visto por uma pessoa sobre um raio de luz?”, ou, se se quiser, uma vez que o próprio Einstein propôs no mesmo “ano milagroso” de 1905, que a luz é formada por um conjunto de grãos, mais tarde chamados fotões, “como é o mundo visto por uma pessoa que acompanha um fotão?” Esta pergunta relaciona-se com outras sobre o movimento, como por exemplo: “Se não se pode ir instantaneamente de um sítio a outro mas apenas, e na melhor das hipóteses, à velocidade da luz, o que significa dizer que dois acontecimentos em sítios diferentes são simultâneos?” Einstein procurou responder a questões deste género realizando as chamadas experiências mentais (em alemão, “Gedankenexperimente”), isto é, experiências muito difíceis ou mesmo impossíveis de realizar na prática mas que se podem realizar mentalmente e cujo resultado deve ser unicamente determinado por um conjunto pequeno de axiomas (o axiomas de Einstein eram apenas dois: “Todos os observadores devem ver as mesmas leis da física” e “A velocidade da luz é constante”) e pela lógica matemática. Foi assim que nasceu a teoria da relatividade restrita, que veio resolver algumas contradições entre mecânica e o electromagnetismo, duas teorias físicas que só aparentemente estavam bem estabelecidas. Einstein, para reter a teoria electromagnética dos britânicos Michael Faraday (1791-1867) e James Clerk Maxwell (1831-1879), teve de rever a mecânica de Galileu e Newton. Foi a unidade das leis da física para todos os observadores – o princípio da relatividade hoje consagrado (“As leis da física, tanto as do electromagnetismo como as da mecânica, são as mesmas para todos os observadores”) – que esteve na base da revolução einsteiniana. Na ciência como na arte um princípio de concordância ou de harmonia é, muitas vezes, o ponto de partida.
Mas saberia Picasso, o jovem nascido em Málaga, Espanha, que foi em 1895 estudar para Barcelona, alguma coisa acerca das imaginações do jovem Einstein nascido em Ulm, na Alemanha, e que foi em 1896 estudar para a Escola Politécnica de Zurique, na Suíça? Decerto que não directamente, mas provavelmente sim indirectamente através dos escritos do francês Henri Poincaré (1854-1912), um dos maiores matemáticos do século XX e que teria sido autor, ou pelo menos co-autor, da teoria da relatividade se tivesse sido um pouco mais ousado (embora não tão claro e completo como o artigo seminal de Einstein sobre a relatividade, um artigo de Poincaré sobre a dinâmica dos electrões precedeu, na sua versão abreviada, o artigo de Einstein por escassos três meses; porém, a versão longa, que não cita Einstein tal como Einstein não cita Poincaré, só apareceu cerca de um ano depois). Segundo o físico e historiador de ciência norte-americano Arthur Miller (sem nenhuma relação com o dramaturgo com o mesmo nome), Poincaré seria a chave para compreender a eventual ligação entre Picasso e Einstein, entre a relatividade e o cubismo. No seu livro “Einstein, Picasso: Space, Time and the Beauty That Causes Havoc” [4], esse autor norte-americano defende que os trabalhos de Poincaré, que já continha algumas reflexões sobre o conceito de simultaneidade e que já reconhecia a relevância das geometrias não euclidianas para descrever o mundo físico, terão estado na origem da primeira obra cubista. Foi um amigo de Picasso, o actuário francês Maurice Princet (1875-1973), que tinha bons conhecimentos de matemática que providenciou essa ligação. Um livrinho francês de divulgação sobre o conceito da quarta dimensão (o tempo) [15], uma noção já presente no livro “Ciência e Hipótese” de Henri Poincaré, saído originalmente em 1902 [16], teria sido muito útil para esse efeito.
Contudo não se sabe ao certo se foi assim e provavelmente nunca se saberá. Curioso é que “Les Demoiselles d´Avignon” [17-18], uma obra de arte fragmentada, na qual parecem coexistir vários pontos de vista (o quadro, inspirado também por arte ou fotografia africana, representa cinco prostitutas não da cidade de Avinhão, mas da rua de Barcelona que tem o nome dessa urbe francesa), tenha aparecido dois escassos anos depois do artigo de Einstein que relacionava os pontos de vista de observadores físicos diferentes. Pode-se aqui com propriedade falar de “Zeitgeist”. Ao contrário do que fantasia a referida peça teatral, os jovens Picasso e Einstein nunca se encontraram em 1904 ou sequer noutro ano qualquer no café parisiense “Le Lapin Agile”, esse sim bem real, localizado no bairro de Montmartre (Einstein visitou Paris em 1913 e 1922, mas não consta que tenha encontrado Picasso). Dizer se houve ou não uma interacção forte à distância entre Einstein e Picasso, através das interpostas pessoas de Poincaré e Princet, é pura especulação. A criação artística tem os seus mistérios, que serão porventura ainda maiores do que os mistérios, já de si grandes, da criação científica...
A propósito de Poincaré e em complemento do que fixou atrás dito, vale a pena transcrever uma famosa citação do seu livro “O Valor da Ciência”, saído no mesmo ano da relatividade restrita [19], sobre o elemento estético da ciência. A beleza da ciência tem, segundo ele, a ver com a beleza da Natureza:
"O cientista não estuda a natureza porque tal é útil. Estuda-a porque tem prazer nisso; e tem prazer nisso porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena o conhecimento nem a vida não valeria a pena ser vivida... Pretendo significar a beleza íntima que provém da ordem harmoniosa das partes e que pode ser compreendida por uma inteligência pura. (...) É porque a simplicidade e a vastidão são ambos belas que procuramos de preferência factos simples e factos vastos; que tomamos prazer ora em seguir os gigantescos percursos das estrelas ora em escrutinizar com um microscópio a pequenez prodigiosa que é também uma vastidão ora em procurar nas eras geológicas os traços de um passado remoto que por isso nos atrai."
REFERÊNCIAS:
[11] Steve Martin, “Picasso and Einstein at the Lapin Agile and Other Essays”, New York: Grove Press, 1997.
[12] Carlos Fiolhais, “Curiosidade Apaixonada”, Lisboa: Gradiva, 2005. O texto “Picasso e Einstein”, contido neste livro, de crítica à peça com o mesmo título é retomado no presente artigo.
[13] Carlos Fiolhais, “Ciência em Palco”, Partilha de Cena, n.º 1, Março de 2007. Uma comunicação ao Congresso sobre “Retórica e Teatro”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2007 retoma o mesmo tema.
[14] Mário Montenegro, “Texto Dramático de tema científico: o caso particular de Carl Djerassi”, Tese de mestrado apreesntada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007.
[15] Esprit Jouffret, “Traité élémentaire de géométrie à quatre dimensions et introduction à la géométrie à n dimensions”, Paris: Gauthier-Villars. 2003.
[16] Henri Poincaré, “Ciência e Hipótese”, Brasília: Universidade de Brasília, 1984.
[17] Christopher Green (organizador), “Picassos’ Demoiselles d’Avignon”, Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
[18] Francine Mariani-Ducray, Jean-Ludovic Silicani, Anne Baldassari e Thomas Grenon, "Picasso cubiste", Paris: Flammarion, 2007. Catálogo de Exposição no Museu Nacional Picasso em Paris de 19 de Setembro de 2007 a 7 de Janeiro de 2008.
[19] Henri Poincaré, “O Valor da Ciência”, Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
FIGURA: Cartaz da peça "Picasso e Einstein" num teatro norte-americano.
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