Texto subintitulado "Da complexidade do mundo à simplicidade das leis" - publicado no meu livro "Universo, Computadores e Tudo o Resto" (Gradiva, 1994), que entretanto se encontra quase esgotado no editor. Devido à sua extensão divido-o em duas partes, a primeira sobre Newton e a segunda sobre o newtoniano Kant e o anti-newtoniano Goethe:
Existem muitas realidades: a realidade para um físico é diferente, por exemplo, da realidade para um filósofo ou da realidade para um poeta. Os físicos chamam realidade a tudo o que, de uma maneira ou de outra, conseguem observar com os seus instrumentos. Os filósofos e os poetas chamam realidade a outros mundos e estão, bem entendido, no seu pleno direito.
Consideremos a realidade física. A realidade, vista pelos físicos, revela-se extremamente rica e variada. O "milagre" que possibilita a Física consiste no facto notável de serem possíveis descrições simples do mundo natural, que tem uma aparência complexa. É esse "milagre" - o facto de uma compreensão do real ser de todo possível - que permite a empresa científica e todos os seus resultados culturais, sociais e económicos. Para o físico norte-americano de origem alemã Albert Einstein, "o que há de mais incompreensível na natureza é o facto de ela poder ser compreendida".
A verificação de que enunciados sucintos permitem abarcar uma multidão imensa de fenómenos, aparentemente díspares, constitui, mesmo para os próprios físicos, um motivo de permanente surpresa e encantamento.
Foi o inglês Sir Isaac Newton o primeiro a experimentar o deslumbramento de uma compreensão unificada do mundo físico. Até ao século XVII, a Lua, os planetas e as estrelas moviam-se ao longo das circunferências de Ptolomeu segundo uma ordem que era estranha ao que se passava no centro de todo o sistema. Havia uma Física do Céu e uma Física da Terra, o que significa, afinal, que não havia Física nenhuma. A história da maçã e da Lua é uma bela parábola sobre a conciliação entre a Terra e o Céu que se dá na mente, subitamente desperta, de Newton.
Com Newton iniciou-se pois a Física, que mais não é do que o trabalho dos físicos para harmonizar as várias porções do mundo natural que teimam em parecer desconexas. A decifração da realidade física consiste em descobrir os grandes princípios ou leis que tornam inteligíveis os fenómenos avulsos. Compreender os fenómenos físicos consiste em estabelecer paralelos, analogias, regularidades.
A primeira grande lei da Física - a lei da gravitação universal - constitui um quadro geral da descrição do movimento de maçãs e luas, de Júpiter e dos seus satélites, do Sol e das outras estrelas, da nossa e das demais galáxias, dos enxames de galáxias e de tudo o resto do "grande jardim zoológico" dos céus. Sabia-se, desde as experiências do italiano Galileu Galilei, como as maçãs e outros graves caíam. Sabia-se, desde as observações do astrónomo dinamarquês Tycho Brahe analisadas pelo seu discípulo alemão Johannes Kepler, como as luas e outros astros se moviam. Passou-se a saber, com a aceitação da lei da gravidade, que as luas também caem e que o fazem da mesma maneira que as maçãs. Pode dizer-se que caem muito pouco: a nossa Lua, por cada quilómetro que anda, cai de um mísero milímetro em relação à trajectória que descreveria se não existisse a força de atracção da Terra. E, todavia, cai. Tanto maçãs como luas são atraídas pela Terra na razão inversa do quadrado da distância.
A história original da Física, como em geral todas as grandes histórias originais, contém um ensinamento profundo: ensina que a experiência, a prática manual, e a teoria, a especulação mental, se impregnam e fecundam. A teoria da gravitação foi proposta para encaixar dados experimentais sobre a queda da Lua e da maçã. Em Física, uma teoria é espúria se não for avaliada pela natureza. Por isso, nem toda a especulação é lícita a um físico sensato. Mas, felizmente, há mais gente, que tenta decifrar outras realidades par além daquela estritamente mensurável.
A lei da gravitação, que tão bem descreve a macroeconomia do cosmo, tem servido de inspiração na busca de outras leis físicas. Procuraram-se, por exemplo, as leis da electricidade e magnetismo à imagem e semelhança da lei da gravitação de Newton. Verificou-se que a força eléctrica entre duas cargas é, tal como a força de gravitação, inversamente proporcional ao quadrado da distância. Essa razão, se mais não houvesse, bastaria para tentar unificar os dois tipos de força. É tarefa ainda não concluída, mas os físicos, esses eternos optimistas, esperam um dia concluí-la. Têm boas razões para o seu optimismo, porque a natureza costuma ser magnânima a deixar juntar o que está, aparentemente, separado. Costuma ser mais optimista do que eles.
Foi a confiança em Newton e na sua lei da gravitação e algum engenho na observação das luas de Júpiter que permitiu determinar a velocidade da luz, pelo dinamarquês Olof Roemer logo no século XVII.
É a confiança ainda em Newton e na sua lei universal que nos permite hoje saber, com antecedência, como e quando a nave "Voyager 2" vai passar perto de Neptuno e da sua lua Tritão. Tornámo-nos crianças travessas que, não contentes em deixar cair maçãs ao chão, lançam maçãs ao espaço e perturbam, ainda que tenuamente, o equilíbrio milenário entre Neptuno e a sua lua maior.
É ainda a confiança em Newton e na sua lei que nos permite afirmar que existe um halo de matéria escura no universo, isto é, uma parte invisível do mundo que atrai tudo o resto. O conhecimento quantitativo dessa matéria escura será essencial para averiguar o nosso destino cósmico.
Newton triunfou, portanto. Com ele triunfou uma certa estratégia de decifração da realidade que se baseia na formulação de hipóteses teóricas, na sua confirmação ou infirmação pela experiência, e na redução dos fenómenos a fórmulas matemáticas concisas. É o chamado método científico.
Newton teve uma corte de seguidores e adversários. Dos seguidores estão repletos os compêndios de ciência. Os adversários, que são raros na comunidade dos físicos, consideraram as concepções de Newton autoritárias, castradoras mesmo. O mundo seria tratado na mecânica clássica como uma instituição militar, sendo as respectivas leis um regulamento de disciplina. Não haveria espaço para a imaginação e o livre arbítrio. Há que reconhecer que houve manifestamente abusos de poder feitos pelo e em nome do grande cientista inglês. A ciência nunca é estranha à personalidade dos seus autores e Newton era um personagem forte, arrogante e intimidatório, que moldou com o seu estilo a ciência transmitida às gerações seguintes.
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