terça-feira, 11 de janeiro de 2011
EU ACUSO
Texto que, com a autorização do autor, está a circular na Internet, motivado pelo assassínio de um professor universitário em Belo Horizonte, Brasil, por um estudante insatisfeito com a nota:
J'ACUSE!!!!
(Tributo ao professor Kássio Vinícius Castro Gomes)
"Mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice." (Émile Zola)
Foi uma tragédia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escárnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado “dano moral” do estudante foi ter que... estudar!).
A coisa não fica apenas por aí. Pelo Brasil afora, ameaças constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O ápice desta escalada macabra não poderia ser outro.
O professor Kássio Vinícius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lágrimas eternas de sua mãe, pela irresponsabilidade que há muito vem tomando conta dos ambientes escolares.
Há uma lógica perversa por trás dessa asquerosa escalada. A promoção do desrespeito aos valores, ao bom senso, às regras de bem viver e à autoridade foi elevada a método de ensino e imperativo de convivência supostamente democrática.
No início, foi o maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que “era proibido proibir”. Depois, a geração do “não bate, que traumatiza”. A coisa continuou: “Não reprove, que atrapalha”. Não dê provas difíceis, pois “temos que respeitar o perfil dos nossos alunos”. Aliás, “prova não prova nada”. Deixe o aluno “construir seu conhecimento.” Não vamos avaliar o aluno. Pensando bem, “é o aluno que vai avaliar o professor”. Afinal de contas, ele está pagando...
E como a estupidez humana não tem limite, a avacalhação geral epidêmica, travestida de “novo paradigma” (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vários setores: “o bandido é vítima da sociedade”, “temos que mudar ‘tudo isso que está aí’; “mais importante que ter conhecimento é ser ‘crítico’.”
Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilização desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina é anabolizado pela lógica doentia e desonesta da paparicação ao aluno – cliente...
Estamos criando gerações em que uma parcela considerável de nossos cidadãos é composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepções e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que “o mundo lhes deve algo”.
Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centímetros de lâmina, bem no coração de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.
Ao assassino, corretamente , deverão ser concedidos todos os direitos que a lei prevê: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de não ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, fará parte do devido processo legal, que se iniciará com a denúncia, a ser apresentada pelo Ministério Público. A acusação penal ao autor do homicídio covarde virá do promotor de justiça. Mas, com a licença devida ao célebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estão por trás do cabo da faca:
EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;
EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a “revolta dos oprimidos”e justificam a violência por parte daqueles que se sentem vítimas;
EU ACUSO os burocratas da educação e suas cartilhas do politicamente correto, que impedem a escola de constar faltas graves no histórico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;
EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serão pressionados a dar provas bem tranqüilas, provas de mentirinha, para “adequar a avaliação ao perfil dos alunos”;
EU ACUSO os últimos tantos Ministros da Educação, que em nome de estatísticas hipócritas e interesses privados, permitiram a proliferação de cursos superiores completamente sem condições, freqüentados por alunos igualmente sem condições de ali estar;
EU ACUSO a mercantilização cretina do ensino, a venda de diplomas e títulos sem o mínimo de interesse e de responsabilidade com o conteúdo e formação dos alunos, bem como de suas futuras missões na sociedade;
EU ACUSO a lógica doentia e hipócrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual, finge que não sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhã;
EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais só para maquiar estatísticas do IDH e dizer ao mundo que o número de alunos com segundo grau completo cresceu “tantos por cento”;
EU ACUSO os que aplaudem tais escolas e ainda trabalham pela massificação do ensino superior, sem entender que o aluno que ali chega deve ter o mínimo de preparo civilizacional, intelectual e moral, pois estamos chegando ao tempo no qual o aluno “terá direito” de se tornar médico ou advogado sem sequer saber escrever, tudo para o desespero de seus futuros clientes-cobaia;
EU ACUSO os que agora falam em promover um “novo paradigma”, uma “ nova cultura de paz”, pois o que se deve promover é a boa e VELHA cultura da “vergonha na cara”, do respeito às normas, à autoridade e do respeito ao ambiente universitário como um ambiente de busca do conhecimento;
EU ACUSO os “cabeça – boa” que acham e ensinam que disciplina é “careta”, que respeito às normas é coisa de velho decrépito;
EU ACUSO os métodos de avaliação de professores, que se tornaram templos de vendilhões, nos quais votos são comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fáceis;
EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos políticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, não têm coragem de aplicar a devida punição;
EU VEEMENTEMENTE ACUSO os diretores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam “promoters” de seus cursos;
EU ACUSO os diretores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionários, pois sua omissão quanto aos pequenos incidentes é diretamente responsável pela ocorrência dos incidentes maiores;
Uma multidão de filhos tiranos que se tornam alunos -clientes, serão despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercício da profissão, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepções do dia a dia.
Ensimesmados em seus delírios de perseguição ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que é lidar com aquele ser complexo e imprevisível que podemos chamar de “o outro”.
A infantilização eterna cria a seguinte e horrenda lógica, hoje na cabeça de muitas crianças em corpo de adulto: “Se eu tiro nota baixa, a culpa é do professor. Se não tenho dinheiro, a culpa é do patrão. Se me drogo, a culpa é dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa é do sistema. Eu, sou apenas uma vítima. Uma eterna vítima. O opressor é você, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas não saíram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era criança, eu batia os pés no chão. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, você pode ser o próximo.”
Qualquer um de nós pode ser o próximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignóbil no professor Kássio dói no peito de todos nós. Que a sua morte não seja em vão. É hora de repensarmos a educação brasileira e abrirmos mão dos modismos e invencionices. A melhor “nova cultura de paz” que podemos adotar nas escolas e universidades é fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.
Igor Pantuzza Wildmann
(Professor universitário e doutor em Direito)
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14 comentários:
Se não se tratasse de um libelo acusatório do sistema educativo brasileiro, eu diria ser um retrato fiel do que se passa em Portugal.
Obrigado, Professor Igor Pantuzza Wildmann, pelo testemunho de coragem do seu texto. Que nele meditem os nossos responsáveis pelas tutelas da Educação e do Ensino Superior, arrepiando o caminho do facilitismo - em que o mérito foi substituido pela mediocridade - com finalidades meramente estatísticas que aumentam o ego, mas que constituem um verdadeiro crime para uma sociedade mais fraterna, mais humana, mais justa, mais responsável. Sociedades portuguesa e brasileira que parecem contentar-se com o slogan, apenas slogan, de que o futuro do país está na sua juventude, uma juventude sem ética e semi-analfabeta em nome de um "homem novo" que apenas nos traz a novidade da criação de verdadeiros monstros? Ou seja, vivemos uma época em que, segundo Raymond Polin, "se reivindicam direitos sem proclamar obrigações, querendo o impossível, jogando às utopias ou às catástrofes".
Eu desejo do mais profundo do meu ser que não haja nenhum professor universitário português a sentir-se obrigado a, um dia, ter que escrever um texto como o do Doutor Igor Wildmann...
Desejo, desejo muito.
Sei, porém, que se for um miserável professor do ensino básico ou secundário a fazê-lo, o acusarão de exagerar alguma situação em que um seu colega foi obviamente culpado.
E os nossos "especialistas" teriam então uma posição asséptica, serena e distanciada. Sobretudo distanciada...
Ao escrever isto bati três vezes na madeira, apesar de não ser supersticioso...
Um texto de rara humanidade e força. Magnífico.
Nós deixamos que esquecessem o que é um professor, o que é a verdadeira Educação. Vamos perder o futuro assim.
Como é possível construir um país se crimes assim acontecem?
Abraços,
Aldrin Iglésias
Brasil
Segundo o lobby das "ciências" da educação, a culpa foi do professor porque não entendeu o aluno...
Por cá um professor suicidou-se devido ao enxovalho diário que sofria de uma parte dos alunos e a inspecção de qualquer coisa investigou o passado do professor... e pagou psicólogos aos alunos porque este caso podia deixar marcas nos jovens...!!!!!!
Caro Fartinho da Silva (11.Jan., 22:59):
Uma pergunta se impõe: que espécie de jovens, adultos de amanhã, estamos a criar para o futuro da sociedade dos nossos filhos e netos?
O ódio às Ciências da Educação impede as pessoas de serem razoáveis. Sr Fartinho comporte-se, Sr Baptista não veja só o lado negro, um pouco de contenção verbal não faz mal a ninguém perante notícia tão trágica.
Caro anónimo das 12:12,
Por acaso fiz alguma acusação falsa? E tenho distinguido bem as ciências da educação do lobby das "ciências" da educação...
Anónimo (12 Jan., 12:12):
A notícia relatada neste post é trágica, mas mais trágicas são as causas que estão na sua génese e que me levam à pergunta por mim formulada no comentário dirigido ao Dr. Fartinho da Silva, e que reproduzo reforçando-a: "Uma pergunta se impõe: que espécie de jovens, adultos de amanhã, estamos a criar para o futuro da sociedade dos nossos filhos e netos?"
Aliás, o post indica as causas que conduziram a um destino tão trágico. Tão trágico como o professor de Música português, que tempos atrás, se suicidou por não aguentar mais o clima de pressão de um sistema educativo permissivo, como o nosso, que não tem a coragem de pôr travão na indisciplina que nele reina e na mediocridade que o sustenta.
Desculpe, mas não consigo ver neste desastrado panorama um mundo cor-de-rosa, apenas plúmbeas nuvens que anunciam a borrasca. Gostaria que ao meu pessimismo se pudesse anunciar um ensino nacional que em nada se parecesse com o assassinato cometido no Brasil e no suicídio do professor de Música. Apenas isto…a não ser que se adopte a passividade de descrita por Eça: “É útil balar com os carneiros; ganha-se a estima dos nédios, as cortesias dos chapéus do Roxo, palmadinhas doces no ombro, de manhã à noite uma pingadeirazinha de glória. Mas ir sacudir, incomodar o repouso da velha Tolice Humana, traz desconfortos; vêm as calùniazinhas, os ódiozinhos, os sorrisos amarelos, a cicuta de Sócrates às colheres”.
Porreira a esquerda não é? Porreira a avançada esquerda brasileira não é? E que dizer das ciências "esotéricas" da educação? Gostaria que posteriormente publicassem o desfecho jurídico final deste bárbaro crime.
Era tudo muito bonito se não tivesse um erro crasso de lógica.
Vejamos: Um dos problemas apontados ao sistema é o tipo de jovens que o sistema cria.
Segundo, um dos problemas que o sistema cria aos jovens é que estes passam a culpar o sistema em vez de se esforçarem. Mas o texto passa o tempo a dizer que o sistema realmente tem influência nos jovens. No que ficamos?
Este imbróglio só é resolvido se o segundo ponto não for criado pelo sistema. Mas se não for criado pelo sistema é criado por quê? Pelos genes? Mas se for os genes, qual é a solução então para esse problema? E porque antigamente não era assim?
Então a minha resposta é antes que os jovens têm razão quando culpam o sistema e quando acham que todos lhe devem e assim fica o problema resolvido. Mas assim não ficamos por aqui.
Porque assim, por exemplo os ditos alunos criminosos são acima de tudo resultados do meio envolvente, seja da escola, seja da família, seja da sociedade em geral. Mas se assim for, ainda que culpados dos crimes, temos de pensar se, não sendo eles totalmente culpados daquilo que são, se se deve pensar em punir ou em reabilitar. Algo que o texto não se dá ao trabalho de dizer é realmente a quantidade de jovens criminosos, daqueles onde as faltas graves não constam do histórico escolar, se tornam reincidentes. E mais, ainda que a dicotomia punição/reabilitação tenha importância para o direito, não sei se os psicólogos não estão mais dentro do assunto (isto porque há quem ache mal chamarem-se psicólogos quando um professor se suicida).
Por ultimo, digo que este comentário não refere exactamente o meu pensamento sobre o assunto, mas antes tento levar um raciocínio sustentado partindo das duas premissas que são, quanto a mim contraditórias, que apresentei no princípio.
Cumprimentos a todos
Tiago Santos
Caro Tiago Santos,
A família da vítima (o professor) não deveria ter apoio psicológico? Os agressores (alunos) não deveriam ser punidos? E a punição não deveria ser exemplar para não haver seguidores dentro da escola?
Estas são as questões a colocar. Porque a conversa do ser-se vítima da sociedade já é demasiado antiga e os resultados da mesma estão à vista de quem os quer ver.
Caro Fartinho da Silva,
1 - claro que a família da vitima precisa de apoio psicológico que, penso, é normalmente facultado também nestas ocasiões.
2 - claro que os agressores deviam ser punidos mas, sempre numa óptica de reabilitação.
3 - estão à vista? Aonde e por comparação com quê? Atenção que eu nem defendi o ponto de vista da vitima da sociedade. Mas era a unica solução para o erro de lógica que o artigo apresentava...
Dois países que falam a mesma língua e por isso pensam e agem de forma análoga, evoluíram de regimes autoritários, ditatoriais, para a democracia e esqueceram que a democracia não pode ser o inverso da ditadura, com o prejuízo de se passar de um extremo rigor para um total laxismo, em que toda a sociedade sai prejudicada.Lá como cá, assistimos estupefactos, a uma intolerável perda de valores que a continuar, nos deixará cada vez mais pobres.Definitivamente a democracia não pode ser isto, as regras e a disciplina terão que estar sempre presentes, para que todos nós possamos ser verdadeiramente livres!
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