David Edmonds e John Eidibow contam estas duas mortes lamentáveis, em primeiro lugar, sob o ponto de vista humano, mas também sob o ponto de vista do conhecimento, da reflexão epistemológica que ele requer, sob o ponto de vista da verdade e da liberdade...
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Schlick estava longe de ser um orador brilhante – apresentava as suas palestras num tom monocórdico e dificilmente audível – mas as suas aulas estavam sempre cheias. Os estudantes apreciavam a lucidez dos seus comentários e a vastidão dos seus interesses, que se estendiam à lógica e à ética. Grisalho e envergando colete, possuía um porte digno e autoritário, e era popular entre a geração mais nova (…). Era também altamente influente na academia como fundador e principal mentor de um grupo de filósofos e cientistas conhecidos como Círculo de Viena, que haviam feito da sua doutrina do positivismo lógico a corrente dominante na filosofia (…).
Enquanto se apressava para a sua lição, esperava-o nesse dia nas escadas uma figura indesejada, a de Johann (ou Hans) Nelböck, um antigo doutorando. Nelböck tinha sido duas vezes internado em asilos psiquiátricos para ameaçar Schlick, sendo diagnosticado como paranóico esquizofrénico (…).
O professor, habitualmente tão imperturbável, ficou aterrado – o que confessou a diversos amigos e colegas. Alertou a polícia e contratou um guarda-costas. Mas, ao fim de algum tempo, não tendo a intimidação resultado em nada, foi decidido dispensar a sua protecção, e Schlick cessou todos os contactos com a polícia… «Receio», disse ele a um colega, «que eles comecem a pensar que o louco sou eu.»
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Às 9.15 quando Schlick chegou ao patamar das escadas que o levavam às salas de Filosofia Nelböck sacou de um pistola automática e disparou quatro vezes à queima-roupa (…). O professor Dr. Moritz Schlick morreu instantaneamente. Ainda hoje existe uma placa de bronze a assinalar o local.
Houve uma segunda vítima do tiroteio. Nelböck pusera igualmente fim ao Círculo de Viena, já ameaçado pelo cada vez mais virulento anti-semitismo que invadia todos os níveis do sistema educativo do estado católico-corporativo austríaco. Na verdade, num triste reflexo da escala a que o preconceito chegara na cidade, logo se espalhou a notícia do assassinato de Schlick, a imprensa assumiu de bom grado que o professor devia ser judeu e o seu assassino um apoiante do governo católico-corporativo. Surgiram dezenas de artigos nos jornais, alguns deles lançando rancorosos ataques a Schlick enquanto expressavam simpatia e admiração para com o assassino (…)
Uma mão cheia de corajosos, que incluíam o filho de Schlick, tentaram refutar as principais acusações levantadas contra o professor. Não era verdade que fosse judeu ou ateu. Era alemão e protestante (…). Também não se associava com os comunistas. E também não era verdade que se fizesse rodear de assistentes judeus (…).
Nelböck foi julgado pelo crime. E mesmo num clima tão envenenado como este, e apesar dos sentimentos do público de que Schlick tivera o que merecia. O veredicto do tribunal foi aquele que seria de esperar (…). A pena de dez anos (…) foi algo branda (…) mas o tribunal levou em consideração que ele confessara e que possuía um passado de doença mental. No entanto, dada a gravidade do crime, o culpado foi também condenado a uma punição adicional – a de dormir numa cama rija, sendo-lhe entregue uma nova a cada três meses.
No caso, não viriam a ser necessárias muitas dessas enxergas de quebrar costas. O caso Nelböck rapidamente se tornou uma cause célebre, e aos olhos do público o assassino enclausurado foi promovido de solitário psicologicamente instável a herói pangermânico. No seguimento do Anschluss ele acabou por beneficiar de liberdade condicional e passou os anos de guerra a trabalhar para o Terceiro Reich como técnico de divisão geológica da Autoridade para o Óleo Mineral."
Referência completa:
- Edmonds, D. & Eidinow. (2001). O Atiçador de Wittgenstein. Lisboa: Temas e Debates, pp. 137-141.
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