sábado, 21 de outubro de 2023

O INEVITÁVEL DECLÍNIO DAS ENTIDADES PSEUDO-EDUCATIVAS

Em tempos recentes, Coimbra rendeu-se à instalação, num edifício central e nobre da cidade, de um “centro de tecnologias digitais criativas”, derivado de uma “associação de natureza privada sem fins lucrativos”.

Esta informação, por si só, nada terá de relevante.
Sendo assim, por que me detenho nela? 
Porque esse centro – explica-se na plataforma online que o apresenta – é de “educação” e propõe-se levar os jovens em idade escolar, que designa por “alunos”, a adquirirem “competências técnicas avançadas em áreas relevantes na atualidade e no futuro”. Recorre, para tanto, a um “programa educativo que combina tecnologia com criatividade”. 

Cada “aluno” segue um “plano de aprendizagem personalizado gerado pelo software”, progredindo por níveis; no final terá um “diploma vivo”. 

Querendo saber que “modelos pedagógicos inovadores” o concretizam, abri uma ligação de pé de página para uma outra entidade. Leio, no mesmo estilo retórico, que se trata de “experiências de aprendizagem envolventes e centradas no aluno que promovam o pensamento crítico, liberem a criatividade e despertem uma forte ligação à aprendizagem". A "missão é capacitar as gerações futuras com as habilidades e o conhecimento para prosperar num mundo em constante evolução”.
Como se percebe, não está aqui configurado um modelo pedagógico e o que é dito nada tem de inovador...
O texto avança fazendo notar que a missão não envolve "fins lucrativos", antes decorre do empenho dos proponentes "em criar mudanças positivas na educação", para o que se estabelecem parcerias com "diversas partes interessadas" num esforço para "revolucionar a educação" e "causar um impacto duradouro nos alunos de todo o mundo".
Propositadamente, não identifiquei, até aqui, a entidade que cito. Pode ser qualquer uma das incontáveis – centenas, milhares... – que têm emergido, sobretudo na última década, por todo o mundo com, declaram, a intenção de o salvar através da educação

De origem privada – em empresas e fundações, mas também ONG –, operam, de modo uniforme, a partir da ideia distorcida de "responsabilidade social" e, mais do que envolverem o sector público, reivindicam o seu apoio, que, de resto, conseguem com grande rapidez e eficácia.

Surgem num determinado país e vão-se expandido para outros, sempre com a devida pompa e circunstância: os meios de comunicação social passam a mensagem, partes interessada associam-se-lhes, políticos acolhem-nas, academias e escolas abrem-lhes as portas, o comum dos mortais acha muito bem. 

A entidade que cito – designada por Tumo Center for Creative Technologies – é, pois, um dos exemplos desse tipo de entidades. 

Um exemplo, de resto, que se afigura bem sucedido em Coimbra (ver aqui): o financiamento da autarquia foi relevante, o mais alto representante desta instância consta entre os seus notáveis, teve a bênção do Governo (pelo menos um dos seus representantes deslocou-se lá), a Universidade e o Politécnico estabeleceram protocolos de colaboração com ela, o mesmo acontecendo com todos os Agrupamentos de Escolas do concelho. 

A entidade declara que "a abertura em Coimbra marca o início de uma campanha de expansão de centros de educação TUMO por todo o território nacional". E estabelece Lisboa como próximo destino. O processo de instalação é o mesmo: conseguido o apoio da autarquia e reunidos mecenas, aguarda luz verde do Governo (ver aqui)...

A infiltração deste tipo de entidades nos sistemas educativos – pervertendo-os, esboroando-os e, em última instância, enterrando-os – não se deve só nem principalmente à sua pro-actividade, à sua desfaçatez, à sua falta de limites, à sua ambição desmedida e afirmação de poder, à sua completa falta de sentido do que é a educação, deve-se, isso sim, antes de mais, antes de tudo, ao Estado, que abdica de fazer o que lhe compete em termos educativos, às Instituições de Ensino Superior e às Escolas, que perderam o sentido da sua função, abastardando os valores que lhes conferem identidade.

Sabemos, contudo, que a racionalidade acaba por sobressair, libertando a educação de poderes – religiosos e políticos, e agora económico-financeiro-tecnocráticos – que a obscurecem. Pode ser por breves momentos e só em alguns lugares do mundo, mas é inevitável que isso aconteça porque a liberdade de pensar, à margem de todo e qualquer poder instituído, é a essência da educação.

A expansão das entidades a que me refiro pelos sistemas educativos, pelas instituições de ensino superior, pelas escolas tem, pois, os dias contados!

Maria Helena Damião

2 comentários:

Anónimo disse...

Nos últimos tempos, estávamos em África porque era necessário civilizar os povos africanos. No caso dos países católicos, as missões da Igreja tinham um papel crucial na educação e evangelização dos indígenas. Os anglo-saxónicos, mais avessos a pregações de doutrinas de igualdade entre todos os homens, atiravam-se, e atiram-se, mais diretamente à exploração das riquezas agrícolas e minerais dos países africanos. Tudo fizeram para nos escorraçar das nossas províncias ultramarinas. É sempre assim: o lado que tem mais dinheiro, no sentido de maior poderio económico, ganha sempre as guerras. Aos vencidos pouco mais resta do que aceitar que quem manda são os vencedores. Neste contexto, a filosofia ubuntu, que alastra pelas nossas escolas C + S está rapidamente a tomar o lugar deixado vago pela moral cristã da religião católica, fortemente abalada pelos escândalos, vindos ultimamente a lume, dos padres pedófilos.

Helena Damião disse...

Caro Leitor Anónimo, deixando de lado a questão do colonialismo político (ligado ao económico), que conflitua com o direito de determinação dos povos, bem como a doutrina religiosa (ainda que diversa) nas escolas, que conflitua com a laicidade da educação pública, reforço o que disse no final do meu texto: não entendo que os educadores (aqueles que tenham interiorizado o sentido de educação humanista) se devam considerar vencidos, nada mais lhe restando do que aceitar que quem manda são os vencedores (estejam eles estribados no poder político, religioso, financeiro ou outro). A "razão", ancorada em conhecimento, permite-nos escolher, no nosso campo de acção, o que é certo, o que está bem que façamos. Não para conseguirmos poder, mas "apenas" para cumprirmos o dever de educar. Dir-me-á que a acção individual pouca relevância tem, que deveriam ser, antes de mais, os Estados (sobretudo os democráticos) a denotar consciência desse dever, inscritos nas suas Constituições. Talvez... mas isso não anula a consciência de cada um de nós.
Cumprimentos, MHDamião

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