domingo, 15 de outubro de 2023

"TUDO O QUE É PRECISO É UM BURACO NA PAREDE". E TODOS APRENDERÃO!

O projecto Hole in the Wall, destinado à educação de crianças e jovens com base "no computador e na internet", foi concebido por um académico com formação em Física, de seu nome Sugata Mitra. Apresentado no final dos anos de 1990, tem sido dado como um caso de inequívoco sucesso. Dispensando a observação e a crítica isentas, tem sido implantado em inúmeros países "em desenvolvimento". Nada de novo, nada de especial: na educação surgem, como regularidade, epifenómenos, sobretudo destinados aos "mais desfavorecidos", assemelhados a milagres, que convém não investigar, sob pena de se perceber a falácia.

Sugata Mitra vem em breve a Portugal, a convite de uma empresa, apresentar o seu método de aprendizagem "baseado na ideia de que as crianças são naturalmente curiosas e motivadas a aprender", mostrando-se "flexível e adaptável às necessidades individuais". Estará acompanhado de nomes que comungam deste pressupostos, propondo-se, como previsto na "nota de imprensa", "debater a educação do futuro" (ver aquiaqui). Outra vez!

Convém dizer que o referido projecto é mencionado no relatório da UNESCO Uma tragédia Ed-Tech?, recentemente publicado. Reproduzo abaixo o essencial da análise que apresenta, nada favorável ao seu acolhimento, sendo, portanto, uma boa ideia descartá-lo da "educação do futuro". (ver aqui, páginas 48 e seguintes). 

(...) A experiência – e as poderosas imagens de esperança que evocou – ajudou a normalizar a ideia de que os computadores podem fornecer a espinha dorsal para uma educação em tudo superior à que as escolas, onde os professores ensinam, pode proporcionar. 
Para a experiência, Mitra (...) colocou um computador pessoal de acesso gratuito com sistema operativo Microsoft Windows no nicho de um muro que separava a universidade onde trabalha, em Nova Deli, de um bairro pobre adjacente. A sua equipa observou como as crianças, presumivelmente sem nenhum contacto anterior com computadores, usavam a tecnologia. Pouco tempo depois, anunciou resultados impressionantes: com intervenção mínima de adultos, as crianças aprendiam línguas sozinhas, melhoravam os conhecimentos de matemática e ciências, formavam opiniões independentes e desenvolviam competências digitais, isto entre outras conquistas (...). 
Mitra caracterizou a sua abordagem como “minimamente invasiva à aprendizagem”. A referência manifesta à cirurgia foi provavelmente intencional. Em termos médicos, uma operação cirúrgica “minimamente invasiva” significa que é realizada através de pequenas incisões para diminuir danos ao corpo. Aplicado à educação, sugeria que as estruturas formais de aprendizagem – escolas, professores, horários, disciplina e assim por diante – eram “invasivas” da aprendizagem, que poderiam atrapalhar e causar danos. O computador, por outro lado, permitia que as crianças aprendessem livremente, desinibidas e “não invadidas”. 
Encorajado pelas solicitações de Mitra, um empreendimento cooperativo com apoio do Banco Mundial começou a estabelecer “estações de aprendizagem” não supervisionadas em áreas desfavorecidas de Nova Deli e noutras comunidades. Mitra rapidamente construiu uma marca pessoal, bem como uma empresa, a Hole-in-the-Wall Education Ltd, em torno da promessa de aprendizagem sem atrito, com tecnologia. 
Em pouco tempo, "estações de aprendizagem" do tipo "buraco na parede" começaram a surgir em todo o mundo, no Camboja, Uganda e muito além. De notar que Mitra e Negroponte (famoso pelo OLPC) [One Laptop per Child] eram aliados ideológicos, tendo Negroponte escrito o prefácio para um dos primeiros livros de Mitra sobre o potencial dos computadores para “a aprendizagem auto-organizada” que “tornaria as crianças mais inteligentes e mais criativas”. 
À medida que se espalhavam as notícias sobre a experiência do "buraco na parede", esta foi recolhendo elogios e entusiasmo: continha narrativas convincentes sobre a inovação, a engenhosidade e a curiosidade das crianças e a capacidade humana de resolver desigualdades de longa data recorrendo-se a soluções tecnológicas simples (...).
Com a crescente disponibilidade da internet, as afirmações de Mitra tornaram-se cada vez mais ousadas: crianças de qualquer lugar e origem poderiam descobrir assuntos complexos, como sequenciação de ADN e trigonometria, sem currículo, professores, escolas ou outros componentes tradicionais da educação escolar. Bastava um computador conectado e o incentivo ocasional dos adultos. 
Sem ironia, Mitra defendeu o recrutamento de 'Grans´ – uma abreviação de “avós”, ou professores reformados – para um trabalho, não especializado, de encorajamento (...). O artigo que publicou em 2009, intitulado Presença remota: tecnologias para 'transmitir' professores para onde eles não podem ir, descreve (...) como uma plataforma síncrona de ensino a distância poderia funcionar, prenunciando práticas que seriam adotadas, com pequenas modificações (...), à escala global. 
Além dos computadores e dos ‘Grans’, a visão de Mitra integrava as vantagens da comunicação entre pares. Ao contrário de muitos proponentes seus contemporâneos da tecnologia, sustentava que as crianças deveriam aprender com a tecnologia conectada em grupos e não individualmente. 
À medida que os preços da tecnologia conectada caíram durante a década de 2010, [esta] abordagem (...) foi deixada de lado em favor da abordagem de um aluno para um dispositivo, promovida e normalizada pelo trabalho OLPC de Negroponte e outras iniciativas. Passaram a ignorar-se as descrições de Mitra sobre a comunicação entre pares, prevalecendo o entusiasmo pela tecnologia (...). 
Em 2010, Mitra fez uma palestra TED (Tecnologia, Entretenimento, Design) intitulada A educação orientada para a criança [quando esta plataforma ganhava destaque, conseguindo] (...) a atenção global para as ideias sobre o potencial educativo emancipatório da tecnologia (...). [Na sua] terceira palestra TED, intitulada Construir uma escola na nuvem Mitra [foi] mais contundente [advogando] a dissolução das escolas. “As escolas como as conhecemos agora estão obsoletas”, disse. [O argumento] é que elas são como fábricas que produzem “pessoas idênticas” [na] “máquina administrativa burocrática” que alimenta o Estado moderno. Em vez disso, defendeu “ambientes de aprendizagem auto-organizados, de colaboração e incentivo” (...).
As escolas, afirmou, subvertem a aprendizagem ao impor uma organização hierárquica rígida e restritiva; sufocam em vez de facilitar a educação. A chave era substituí-las por computadores conectados (...). A professora ou avó facilitadora (...) precisava apenas de fazer perguntas, encorajar e [observar] enquanto as crianças progridem. 
[Com esta palestra], Mitra ganhou um prémio TED no valor de 1 milhão de dólares, o que impulsionou ainda mais as suas ideias. [Esta organização apoiou-o, tendo, por exemplo, patrocinado um documentário sobre a sua obra, lançado em 2018]. A voz de Mitra ouve-se enquanto passam imagens de salas de aula superlotadas e alunos entediados: “Qual é o futuro da aprendizagem? Será que precisamos de ir à escola? Ele responde a essas perguntas com outra pergunta: “Será que no momento em que precisamos saber alguma coisa, podemos descobri-la em dois minutos?”. Com o som da música a aumentar, mostram-se pessoas a carregar equipamentos de informática para vilarejos remotos na Índia e crianças entusiasmadas aglomeradas junto a ecrãs, realizando pesquisas na internet e – o espectador é levado a supor – aprendendo. A narração de Mitra continua: “Se as crianças puderem pensar de maneira caótica, elas fixar-se-ão em grandes ideias. E à beira do caos, tudo acontece”. São mostrados trechos rápidos de pesquisas na internet: “O que é eletricidade?”, “Por que cantam os pássaros?”, “Quem inventou a internet?”.  
A mensagem inequívoca é que a aprendizagem espontânea, confusa e “caótica” com tecnologia conectada é mais rica e profunda, além de evitar os controlos opressivos da escolaridade formal. Esta mensagem constitui a base de livro com o mesmo título da palestra (...). Publicado alguns meses antes da pandemia, prometia ajudar os leitores a “vislumbrar o futuro emergente da aprendizagem com tecnologia” (...).
Com ou sem pandemia, as pessoas de dentro e de fora da educação passaram a ver a tecnologia como [capaz] de melhorar e transformar a aprendizagem. Foi entendida como o motor essencial para (...) as novas lógicas em rede da “era da informação”, da “economia do conhecimento” e da “Quarta Revolução Industrial”. Mesmo a linguagem contemporânea da reforma escolar, com os seus apelos à “actualização”, “recodificação”, “religação” e “reformatação” dos processos educativos tradicionais, adoptou o léxico da tecnologia e da computação. Finalmente – e de forma crucial – a tecnologia foi amplamente vista como uma primeira opção de solução para crises educativas. 
Porém, nem todos na comunidade educativa aderiram com entusiasmo a esta visão optimista. Académicos têm notado que a metáfora da escola como fábrica pode ser “enganosa, hiperbólica ou obsoleta” e que é frequentemente utilizada, em situações de emergência, e com interesses comerciais. No entanto, os seus trabalhos têm sido geralmente ignorados, tal como as tentativas de questionar se a tecnologia permite realmente alcançar os resultados educacionais que os seus promotores alegavam. 
A antropóloga Payal Arora, por exemplo, visitou dois locais na Índia onde foram montados quiosques de aprendizagem. Viu que, apesar do significativo investimento, eles estavam “parados” e pareciam “mal ter tocado a comunidade”. Apenas dois anos após a implementação do projeto (...) quase não havia “memória comunitária dele”. Também verificou “a ausência de investigação independente” (...), os poucos investigadores que analisarem os quiosques não ficaram impressionados e encontraram pouco que sugerisse que eles facilitavam uma aprendizagem significativa e sustentada. 
Depois de observar crianças a utilizar os quiosques em Nova Deli e de falar com elementos da comunidade, Mark Warschauerinvestigador da educação, concluiu que o termo mais preciso para o modelo de “educação minimamente invasiva” (...) era “educação minimamente eficaz”. Criticou o "projecto do buraco na parede" e outros semelhantes por desconsiderarem os sistemas humanos e sociais onde a tecnologia foi implantada. 
Talvez a investigação mais rigorosa deste projeto tenha sido a realizada por Frank van Cappelle (2003 a 2005), que passou seis meses em aldeias indianas onde estavam localizados quiosques. Falou com crianças, pais e professores e fez capturas de ecrãs, entre outras modalidades de pesquisa. A sua conclusão central foi que os quiosques, quase sempre instalados em espaços públicos não supervisionados, reproduziam as desigualdades existentes na comunidade: de casta, género, estatuto socioeconómico e idade (...). Os principais utilizadores eram rapazes, mais velhos (depois dos 12 anos), mais ricos e mais alfabetizados digitalmente (...). Van Cappelle notou ainda que os computadores eram usados ​​quase sempre para entretenimento (...). Os usuários regulares adquiriram algumas habilidades básicas de alfabetização digital (...) e pareciam desenvolver confiança na utilização dos computadores, além disso, passavam algum tempo em grupos, interagiam, comunicavam e colaboravam, como faziam noutros ambientes. 
Mas estes lampejos positivos não corroboram os impressionantes ganhos educacionais apregoados por Mitra (...) o título que deu à sua investigação – O lado mais negro da exclusão digital – denota precisamente o contrário. 
(...) Entre os projetos que direcionaram recursos para escolas desfavorecidas, geralmente em países em desenvolvimento, está o OLPC [ver acima]. Uma das poucas avaliações independentes que se fez dele, no Peru, não encontrou evidências de aumento de aprendizagem em matemática e línguas (...) 
Larry Cuban, historiador da educação da Universidade de Stanford e cético de longa data em relação às soluções tecnológicas para a educação, lamentou (...) que parece não haver “fim para o pensamento mágico quando se trata de ensino de alta tecnologia”. 
Apesar de vozes como esta, muitas pessoas – hipnotizadas pelo crescente poder e omnipresença da tecnologia conectada – permaneceram firmes na convicção de que mudanças educacionais transformacionais estão prestes a acontecer na esquina (...) catalisando a aprendizagem com maior facilidade, menor custos e menos intervenções escolares e docentes. Quando o novo vírus começou a espalhar-se em todo o mundo no início de 2020, a tecnologia era amplamente aceite – ainda que não necessariamente por pessoas mais próximas da educação – como uma ferramenta capaz de transformar a educação para melhor. Era a ferramenta disponível e as pessoas acreditavam nisso fervorosamente.

2 comentários:

Anónimo disse...

O aparecimento da televisão, na segunda metade do século XX, não levou ao desaparecimento da escola tradicional, entendida como o lugar onde os professores ensinam e os alunos aprendem, mas a televisão foi, e ainda é, um poderoso instrumento auxiliar do professor na tarefa, cheia de dinamismo de educar os cidadãos da república. O computador, com as suas enormes potencialidades, também deverá, na minha modesta opinião a ser encarado como mais uma ferramenta, entre outras, de melhorar a interação de ensino/ aprendizagem entre professores e alunos dotados de espírito, de carne e de osso.
Já as doutrinas muito elaboradas, e muito estúpidas, que conduzem a aulas normais de 2 horas, sem intervalo, para adolescentes de 13 anos, e ao sucesso educativo para todos, por meio da proibição dos exames e do ensino dos professores, podem acabar com a escola onde os professores ensinam e os alunos aprendem.
Convém recordar que na escola, que frequentei em plena noite fascista, davam sopa todos os dias para alimentar e atrair os pobrezinhos para as aprendizagens. Agora as refeições são servidas nas escolas como um único fim: alimentar os pobrezinhos. O sucesso educativo universal e falso, com ou sem computadores e telemóveis, tomou conta das escolas. Até quando?!

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo, ao ler o seu comentário lembrei-me da nota de Diane Ravitch, que tenho por investigadora séria e empenhada na educação pública, na publicação da UNESCO que refiro. Disse ela (traduzo de modo livre e abreviado): "Esta é uma publicação importante por veicular um aviso que ignoramos por nossa conta e risco. O que aprendemos com a pandemia é que a tecnologia educacional não é um substituto eficaz para professores humanos, que ouvem e cuidam de cada aluno. Porém, agora a indústria da tecnologia educativa procura mistificar isso mesmo, expandindo o seu controlo sobre alunos e salas de aula em todo o mundo. Não podemos permitir que o fracasso triunfe."
Cumprimentos, MHDamião

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