Por Eugénio Lisboa
A paz é o único combate
que vale a pena travar.
Albert Camus
Há quem viva só de ideologia e esteja completamente anestesiado para a sensibilidade, não sendo capaz de reagir ao horror da destruição e preferindo refugiar-se na abstracção fria das estatísticas e dos clichés ideológicos.
A ideologia é um colete que os protege do sentir e simpatizar com a dor verdadeira: a dor que doe aos de um lado e aos do outro. A ideologia é, muito frequentemente, um escudo contra a dura realidade. É uma ideologia fria e calculista, sem ouvido nem simpatia para o adversário e que, diante de uma vala comum de cadáveres apodrecidos, pergunta, primeiro, quem matou, para saber se deve ou não condenar.
Porque há, como já se tem ouvido, assassinos maus e assassinos bons. Os actos dos bons escondem-se debaixo do tapete e a sempre prestável História que os absolva.
Há guerras boas e guerras más, dizem os ideólogos amigos destas dicotomias confortáveis.
Mas Hemingway, que chafurdou em três guerras tremendamente mortíferas e, numa delas, se feriu, sabendo portanto bem do que falava, avisou-nos de que mesmo as guerras boas eram obviamente más. Porque viu o sangue, a lama e a urina, o vómito, os corpos estropiados e os piolhos em escala apocalíptica e, em face de tal visão, não havia lugar para finas destrinças ideológicas: era tudo infame, de um lado e do outro.
O “não matarás” não se aplica só ao outro lado, aplica-se também ao nosso. E, para este mandamento, não pode haver “mas”.
O ideólogo frio e manietado por clichés é um assexuado do sentir, um estropiado da sensibilidade.
A filologia leva ao crime, mostrou Ionesco, numa peça célebre. O ideólogo agarra-se à filologia, como boia de salvação que lhe permite flutuar no mar do não sentir. Diante de um amontoado de mortos anónimos, só lhe interessa saber se são mortos do lado certo ou do lado errado. O espectáculo do massacre não o arranha minimamente, o importante é receber o recado certo, do mandante seguro: que lhe diga, sem pestanejar, se deve ou não condenar.
O ideólogo refugia-se em clichés mortos, porque estes não sangram nem doem. Três milhões de mortos não têm importância, se o morticínio estiver do “lado certo da História”, signifique isto o que significar. O horror justificado não cria pesadelos. Substituir a fotografia de uma cidade destruída por uma frase desinfectada e maravilhosamente abstacta dá garantias de sonos bem dormidos. Enquanto debitam parágrafos sobre os ventos da História e sobre a inescapável justiça que esta fará aos da “boa doutrina”, não se é obrigado a reparar no Holocausto vigente.
Há enormes promessas de conforto na filologia que, não só leva ao crime, como serve para o esconder debaixo do tapete.
Entretanto, vamo-nos inclinando cada vez mais para a convicção de que não há nada tão reles como a boa consciência dos patifes. Para estes, a razão serve para justificar que tudo pode ser justificado com ela.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
IMPERIALISMO - Difunde, pelas formas mais subtis, a admiração pelo dinheiro e o ideal da "sociedade de consumo ". Torna a depravação sinónimo de "liberdade sexual", a pornografia critério de "liberdade de criação", a violência inútil e criminosa "ideal" de coragem. Utiliza intensamente todos os meios de propaganda, todas as formas de criação artística para incitar ao egoísmo e ao desregramento dos costumes. Os "heróis" da literatura, do cinema, do teatro, são seres marginais, bandidos, degenerados. O homem retratado na pintura e escultura é um ser distorcido, retalhado e monstruoso.
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