Por Eugénio Lisboa
Há sempre um grande número de poetas com medo de perderem o último comboio: o comboio das vanguardas. Em vez de serem irresistivelmente arrastados a escreverem poesia, para exprimirem, em linguagem exploratória, os assombros que se lhes deparam no caminho, estão antes preocupados em escrever versos segundo os modelos mais “avançados”.
Baudelaire tinha verdadeiro horror a termos como “avançado” e “vanguarda”, que considerava mais apropriados a militares do que a poetas.
Houve um período, em Portugal, em que a obsessão com o “avançado”, em poesia, se tornou um verdadeiro terror. Ninguém se atrevia a não ser “avançado”. Julgo que alguns generais desse movimento eram os únicos capacitados de emitir certificados de avançadismo.
O que a poesia trazia de exploração do mundo interior e exterior, em linguagem adequada a tal exploração, não interessava. A poesia “não dizia nada”. O importante era a “linguagem” avançada, com a qual, não pretendia dizer rigorosamente nada. A linguagem tornou-se, assim, intransitiva: estava ali, para não dizer nada, só para ser linguagem, fosse lá isto o que fosse. Quem acreditasse nisto ficava dono de um imenso poder literário, como aconteceu, entre outros, a Gastão Cruz, ainda pior ensaísta do que poeta.
Mas o poder literário tem mistérios que a razão não decifra. Desde que se digam coisas estranhas, muito obscuras, muito radicais, muito fracturantes, muito inesperadas, a razão baixa as armas e rende-se ao charme nada discreto do bizantino.
O não dizer nada da poesia tornou-se uma imposição, inaugurou um terror, com guilhotina à mão de semear. Grandes poetas não avançados eram impiedosamente atirados para a lixeira. Ai do verso que dissesse “ontem choveu desabaladamente”. Nos versos avançados, não chovia, muito menos, desabaladamente. Tudo o que tivesse ou acrescentasse algum sentido à “linguagem” era proibido.
Isto era estar na crista da onda. Os decretos emanados destes chefes das forças armadas da poética nacional eram, como disse, ferozmente impositivos. Ali, não se brincava em serviço. Quem almejasse “zer visto” e ser incluído numa antologia de poesia avançada, tinha de ter muito cuidado em não tornar, nem que fosse só uma nesga de linguagem, transitiva. A poesia não dizia: ERA.
Nunca me esquecerei de uma sessão, no Departamento de Estudos Portugueses, do King’s College, em Londres. Nessa sessão, estava presente o grande poeta Eugénio de Andrade, que Gastão Cruz, ali leitor de Português, convidara. Gastão Cruz fez a apresentação de Eugénio de Andrade e aproveitou para explicar à audiência que a poesia não quer dizer nada, visto que é só linguagem. O poeta de OBSCURO DOMÍNIO agradeceu a apresentação e, depois, fez uma admirável conversa em que tentou captar, para nós, o que a sua poesia podia significar e de que modo fizera uso de “palavras maternas” para DIZER, poeticamente, o que pretendia. Gastão Cruz nem pestanejou e engoliu, em silêncio, as heresias que o poeta debitou. E ouvi-o, muito mais tarde, no Centro Cultural de Cascais, vender de novo a sua funda convicção de que a poesia serve para não dizer nada.
Para terminar, não resisto a transcrever, para uso dos meus leitores, uma passagem do livro O ALUNO RELAPSO, do grande poeta e ensaísta brasileiro, Lêdo Ivo:
“Considero a pesquisa e a experimentação fundamentais à criação poética, pois sem elas a literatura e a poesia ficariam estagnadas, não se renovariam. Defendo o direito ao erro e sempre coloco a criação artística sob o signo do risco e da aventura. Mas é preciso sublinhar que, hoje, não sabemos mais o que é vanguarda nem o que não é vanguarda. A última vanguarda, no Ocidente, foi o surrealismo. Depois, todos os poetas e escritores se tornaram herdeiros e usuários de tudo. Aqui no Brasil, que é um país cosmético e epidérmico, muitos pensam que a imitação da vanguarda é também vanguarda, quando não passa de uma paráfrase suburbana.”
Deixo esta meditação acutilante, grátis, a quem queira fazer bom uso dela.
Eugénio Lisboa
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