terça-feira, 31 de outubro de 2023

A PROPÓSITO DO RACIONALISMO. OS QUE CAVAM A SUA SEPULTURA E A DOS FILHOS E NETOS

Por João Boavida 

Do que estamos a falar quando se fala de Racionalismo? 
 
Obviamente da capacidade de usar a nossa razão, de pensarmos com racionalidade, de vigiar os nossos pensamentos e atitudes porque, frequentemente, fazemos raciocínios enviesados, produzimos irracionalidades que, por sua vez, nos levam a opiniões menos esclarecidas e a atitudes menos sensatas, em suma, menos humanas.
 
E menos humanas porque a razão é a nossa faculdade específica, e nenhum outro ser vivo a possui como nós; muito longe disso. O que nos distingue das outras espécies, ou aquilo pelo qual mais nos distinguimos delas é a capacidade de pensar autonomamente, vigiando a lógica das operações mentais e policiado os sentimentos porque facilmente a atacam, escurecem e aniquilam. 
 
O Racionalismo apareceu na Europa no século XVIII, e tem ilustres nomes na sua história, mas um dos mais importantes, senão o maior, foi o filósofo Emanuel Kant, que nos desafiou a usar a razão, nos encorajou a sermos capazes de ultrapassar as barreiras e as vedações que frequentemente nos são colocadas, pelo poder político, pelas autoridades religiosas, e por outras forças, como, por exemplo, todos os condicionamentos limitadores provocados por formas educativas anti humanas, atrofiantes e aviltantes. 
 
Atreve-te a pensar por ti mesmo, não tenhas medo de utilizar a tua razão, de te servires dela para todas as situações, em suma, habitua-te a utilizar a capacidade racional que tens, e valoriza-a, até porque, ao valorizar a tua estás a valorizar a dos outros e, por reflexo, os outros valorizarão a tua e assim sucessivamente. 
 
Como é de calcular, estas ideias, ao incentivarem cada um a pensar pela própria cabeça, eram muito arrojadas, punham em causa hierarquias estabelecidas e, obviamente, eram política e socialmente perigosas. Mas foram a condição da libertação do espírito humano, e proporcionaram um enorme salto cultural: ideias, métodos, modos de observar e pensar, verificações objetivas, enfim tudo o que está na base da ciência e do pensamento modernos. 
 
E também, obviamente, das democracias modernas, das que são verdadeiras democracias e dignas desse nome, claro. Foi uma conquista que levou séculos a concretizar-se, que teve que lutar contra imensas forças contrárias, que iam da execução (de muitas e variadas maneiras) ao ostracismo, à prisão, ao degredo, e até em pequenas coisas, como no ensino duma dada matéria, às vezes se manifestava. 
 
Lembro, por exemplo, que no programa de Filosofia do antigo 7.º ano, anterior ao 25 de Abril, já em pleno século XX, as ideias de Kant eram ainda escamoteadas, ou apresentadas sempre com muita reserva e muitas argumentações em contrário porque punham em causa o teísmo dominante. 
 
O grande drama do pensamento livre é que a vida humana é curta, todos têm que aprender a pensar pela sua cabeça, e essa tarefa, a aprender em cada geração, deve competir à educação, tanto familiar como estadual. 
 
Mas muitos dos que têm essa obrigação não sabem disso, outros não estão interessados, e as próprias vítimas não chegam frequentemente a perceber a situação de desvantagem em que foram colocadas. 
 
Um homem livre não é fácil de enganar e de ser posto ao serviço de demagogos, de tiranos e de déspotas; o livre pensamento sempre foi o grande inimigo a abater por gente dessa espécie. 
 
Por outro lado, muitos anos depois do apogeu do Racionalismo, e do idealismo que manifestava, o género humano foi confrontado com formas absolutamente sinistras e degradantes de atacar a razão humana e de negar a liberdade de pensar, o que demonstra que cada geração tem, de facto, de aprender a ser livre e de valorizar aquilo que a liberta: o pensamento autónomo e imparcial. 
 
Portanto, esta extraordinária conquista europeia (entre muitas outras) que devia ser valorizada e defendida por todos os europeus – e pelo restante mundo livre, certamente, mas sobretudo por nós - não cessa de ser dominada e aviltada por toda a casta de ódios, ideologias e movimentos que apelam a tudo menos àquilo que nos dá a capacidade humana mais valiosa. 
 
Ao desvalorizar a razão estamos a corroer por dentro a própria sociedade e o melhor que ela tem. 
 
Povos inteiros são ainda hoje impedidos de pensar, de livremente se expressarem, condicionados que estão por ditaduras implacáveis e imorais. É, também é muito triste ver cidadãos de países livres procurarem destruir este bem incalculável, como fazem hoje os pós-modernos, os pós-humanistas, os pós-democratas, os pós-racionalistas e os pós-moralistas e sei lá que mais, que campeiam por aí sem perceberem, ou percebendo, que estão a cavar a sua sepultura e a dos filhos e netos. 
 
João Boavida

8 comentários:

Eugénio Lisboa disse...

Gostaria de ter escrito esta bela, lúcida e eloquente defesa da autonomia de pensar, que anda de braço dado com a defesa do uso da razão. Em palavras limpas, serenas e infinitamente decentes, o Professor João Boavida dá-nos um luminoso verbete que só os que têm medo de pensar por si não apreciarão.. Claro que os tiranos, tiranetes e seus serventuários nunca foram grandes advogados da intrépida autonomia do pensar. Perdoai-lhes porque eles sabem o que estão a fazer!
Obrigado, Professor João Boavida.
Eugénio Lisboa

João Boavida disse...

Caro Professor Eugénio Lisboa
Agradeço as suas palavras, embora excessivamente elogiosas. Não pretendi fazer literatura mas chamar a atenção para a desvalorização da razão que por aí campeia. E se ainda fosse só pelos que, por deseducação ou fanatismo, não a treinam, não a usam nem sentem necessidade dela, ainda o caso era compreensível, embora triste. Incompreensível e verdadeiramente perigoso são os que a sabem usar mas a escondem ou usam mal para obter sabe-se lá que vantagens. Na realidade nenhumas se podem obter por esta via. Talvez seja só para parecerem não já modernos, claro, mas pós-pós-modernos, sem fazerem a mínima ideia do que daí pode resultar. Pensar não é com eles.
Que grande crise moral por aí vai!

Anónimo disse...

O que este senhor aqui veio fazer foi para estarmos calados e nada dizer a respeito das atrocidades de milhares e milhares de bombas que os europeus lancam sobre as cabecas dos outros povos.

Veio dizer para que, - em nome desse bem maior, que é a liberdade de pensamento racional dos europeus -, facamos silencio às atrocidades.

O silencio das atrocidades é que nos deve assustar pois vai-nos levar ao fim sinistro que se alude no texto.

É de perguntar a este senhor se do outro lado não há futuro, não há criancas, se as nossas criancas são mais valiosas?

Há dias um troglodita na TV, munido desse espirito livre de pensamente disse que o "o valor da vida para um israelita é muito superior ao valor da vida para um palestino".

É mentira.

É indiscritivel a dor das mães palestinas.

Haja vergonha, e diga-se a Verdade.

Carlos Maia disse...

Usar a razão não implica colocá-la ao servivço de qualqiuer interese particular ou de etnia. E não é honesto intelectualmente ver no belíssimo texto do Doutor Boavida qualquer defesa sectária de uma etnia, religião, classe social, empresa financeira ou partido político. Toda a sujeição a essas fações está bem rejeitada, com a condição de que a pessoa use a razão.
Não costumo responder a comentários como o anterior; mas devo esclarecer que nenhum dos autores racionalistas defendeu o crime. Mesmo o idealismo hegeliano não tem uma interpretação consensual quanto a uma possível fundamentação do autoritarismo de estado.
A defesa da liberdade singular e coletiva é um traço marcante da chamada cultura ocidental, apesar de ainda haver países deste âmbito que, infelizmente, apliquem a pena de morte. Mas esta é rotina diária nos países árabes e é aplicada, numa expressão popular, por 'dá cá aquela palha', ou seja, por motivos completamente fúteis, como o uso ou não uso do véu.
Sabemos que o poder religioso europeu não foi muito recetivo em relação ao iluminismo, como não o tinha sido em relação ao renascimento; mas também sabemos que foi a igreja cristã a responsável pela conservação da cultura filosófica, pela pouca alfabetização medieval e até pelo avanço da medicina e da arquitetura sobretudo na média e baixa idade média.
Também é certo que a medicina e a filosofia progrediram, tirando os grandes padres da igreja, por intervenção de árabes e cristãos não ortodoxos, como Averróis Espinoza. De qualquer modo, usando a ideia de Hans Küng, que não é um teólogo cristão muito ortodoxo, enquanto um cristão não pode invocar o evangelho para justificar os crimes, um árabe ortodoxo deve matar os 'infiéis', tal como os apóstatas. E é mesmo matar. O Alcorão é claro: é preferível matar do que aprisionar - se bem que os muçulanos viveram o dilema de matar e não cobrar o imposto de sobrevivência ou não matar e ver os 'infiéis' aumentar em número e serem uma ameaça.
Parece-me, portanto, que um texto como o do Doutor Boavida merece: uma grande atenção como alerta; um agradecimento por se ter preocupado com a crise atual de submissão a formas e comportamentos irracionais, em que se colcocam vantagem social, financeira ou política acima da dingidade humana; e merece ser aplicado ao que se passa na escola atual, que incentiva a emoção em detrimento do saber e da reflexão. Isto para os pobres e distraídos, claro, porque os mais ricos e atentos mandam os filhos para os colégios, onde o saber e a reflexão são distribuídos com seleção.
Acho, finalmente, que um comentário deve acrescentar algo de positivo que dignifique quem o produz e incentive quem iniciou o debate.

Anónimo disse...

"das que são verdadeiras democracias" O que são verdadeiras democracias? Há verdadeira democracia enquanto uns trabalham e outros decidem o destino a dar ao produto? Estou a referir-me à falta de democracia económica.
Por outro lado parece-me (estarei a interpretar mal?) que está implícito no artigo de J. Boavida a existência de uma certa superioridade do Ocidente. O problema é que os outros pensam da mesma maneira a respeito da respectiva cultura.

Anónimo disse...

Boa tarde. Quando se quer distorcer um discurso, distorce-se. Por palavras mais simples, quando se quer desconversar, desconversa-se! Mesmo que o texto seja claro como o que motiva esta distorção, a desconversa do anónimo anterior.

Anónimo disse...

"Quando se quer distorcer um discurso, distorce-se." Como o Snr exemplifica. Tudo o que diz aplica-se ao seu discurso.

João Boavida disse...

Excelentes comentários, que têm a qualidade de ser profundos, abrangentes, informados e expostos com correção. Muto obrigado. O problema é muito vasto, as perspetivas da racionalidade e das suas aplicações não têm propriamente limites. Esse desenvolvimento é aqui feito, e bem, por Carlos Ricardo Soares. Carlos Maia chama a atenção, entre outras coisas, para certas realidades do Islão que andam esquecidas. Mas eu não me referi a isso em particular. Só pretendi chamar a atenção para a autonomia de pensar, o poder pensar livremente, que é um contributo do Ocidente, que a muitos é vedado, e que nós andamos a desvalorizar e a usar tão mal que qualquer dia o dispensamos de todo.

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