Minha comunicação convidada no Congresso "Outrora Agora" da Sociedade Portuguesa de Psicanálise realizado há dias no CCB em Lisboa:
O futuro agora: estamos perante o problema, o mistério, do tempo. Todos sabemos e a física também sabe que há uma seta no tempo: distinguimos o passado do futuro. Sabemos o passado, mas não sabemos o futuro. A física, embora de modo muito limitado, consegue fazer previsões, antecipando o futuro. O passado é um guia indispensável para asses exercícios de prospectiva. Mas, enquanto a física de Newton e Einstein, eivadas de determinismo acertam, já o mesmo não se passa nas ciências sociais e humanos. Freud em O Eu e o Id, em 1923, publicado há cem anos, dizia que não acreditava em “sonhos proféticos.” Por muito que conheçamos o passado – outrora - falhamos sempre a saber o futuro – que começa agora. Em particular, as descobertas da ciência e as invenções da tecnologia têm-se revelado impossíveis de prever.
As falhas das previsões
O físico norte-americano Albert Michelson, Nobel da Física em 1907, autor de uma experiência decisiva para validar um postulado da teoria da relatividade restrita (que é de 1905, o mesmo ano dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade de Freud), afirmou em 1894:
“Parece provável que a maior parte dos grandes princípios já estão firmemente estabelecidos e que os avanços futuros precisam de ser procurados arduamente na aplicação rigorosa desses princípios a todos os fenómenos de que temos conhecimento. (…) As verdades futuras da física devem ser procuradas na sexta casa decimal.”
Os físicos enganam-se. Não tinha ainda passado uma década e já havia duas teorias físicas completamente novas: a teoria quântica e a teoria da relatividade, que haveriam de permanecer inabaláveis até aos dias de hoje. Einstein esteve na génese das duas, embora se tenha distanciado da segunda, como um pai que se vê abandonado pela filha… Complexo de Electra!
O britânico Lorde Kelvin, um dos maiores físicos do século XIX (tem uma relação com Portugal: casou com a filha do cônsul inglês no Funchal), disse, numa conferência na Royal Institution de Londres em 1900, com notável premonição, que existiam, na física clássica, dois pequenos problemas por resolver:
“A beleza e a claridade da teoria dinâmica, que coloca calor e luz como modos de movimento, está presentemente obscurecida por duas nuvens.” Essas duas “nuvens” deram lugar às duas teorias referidas, que são os pilares da física moderna e que, em particular a teoria quântica, proporcionaram enormes transformações do nosso modo de vida.
Outras pessoas notáveis falharam nas suas previsões. Alguns deles grandes chefes militares. O marechal francês Ferdinand Foch, professor de Estratégia na Escola Superior de Guerra em Paris, que seria comandante das forças aliadas na frente oeste durante a Primeira Guerra Mundial, declarou em 1911 que “os aviões são brinquedos interessantes, mas não têm qualquer valor militar.” O almirante norte-americano William Leahy, um dos militares mais medalhados desse tempo, disse ao presidente Truman em 1945 a respeito da bomba atómica: “Esta é a maior tolice de sempre. A bomba atómica não explodirá nunca, e falo como especialista em explosivos.” As explosões de Hiroxima e Nagasaki calaram-no.
Sobre os computadores, que proliferaram no mundo de forma vertiginosa nos últimos décadas, também há todo um reportório de previsões falhadas. Vejamos, dois dos maiores erros. Em 1943, Thomas Watson, fundador da IBM, afirmou: “Penso que no mundo só há mercado para talvez cinco computadores.” Mais tarde, em 1977, Ken Olsen, fundador da DEC, uma companhia igualmente pioneira na área, declarou: “Não há nenhuma razão para que um cidadão comum queira ter um computador em sua casa.” Em 1973, quando foi fundada a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, não havia quaisquer computadores pessoais. Os empresários, tal como os físicos e os militares, enganam-se.
Falta acrescentar que os economistas se enganam, que os políticos se enganam, que os filósofos se enganam. Mas como há muita gente a dizer coisas muito variadas, e, portanto, alguns dele poderão o ocasionalmente acertar. Não vou dizer que os psicanalistas se enganam, porque eles sabem-no. Errar é humano. Como disse Niels Bohr: «É muito difícil fazer previsões: em especial, do futuro.» Sim, porque há sítios em que a interpretação a história muda tão rapidamente que é difícil fazer previsões do passado: foi o caso da antiga União Soviética…
Os desafios do futuro
Einstein disse que nunca pensava no futuro, pois ele “chega sempre cedo demais.” Ele próprio antecipou o futuro ao formular as suas teorias da relatividade e quântica, no annus mirabilis de 1905. Como o futuro nos traz sempre surpresas – por vezes desastres como epidemias e guerras, temos medo do futuro. É a coisa mais humana, ter medo. É, para além do mais, um instrumento biológico de sobrevivência, um meio de vida. Claro que demasiado medo paralisa: um meio de vida transforma-se num meio de morte.
Tivemos e temos medo da bomba atómica (que Einstein viu, mas Freud não, por ter morrido em 1939), tivemos e temos da superpopulação, da falta de recursos e da degradação do ambiente, temos medo de que o céu nos caia na cabeça. E tantos outros grandes medos.
Escolho três dos grandes problemas actuais, que nos causam medos e que também nos lançam desafios (Friedrich Hölderlin: “onde está o perigo está também a salvação.”)
1- Aquecimento global: o aumento por mão humanas das emissões de CO2 está a prejudicar a nossa vida na Terra. No futuro não trará o fim da nossa espécie, mas já está a trazer a de outras espécies. Seremos todos refugiados climáticos se não mudarmos as nossas fontes de energia, abandonando os combustíveis fósseis. Estão na rua contestações a políticas de continuação do status quo. Não sei o que nos vai acontecer, mas estou em crer que haverá salvação. Não acreditando em milagres, espero que a inovação nos traga soluções que hoje não imaginamos.
2- Genómica: hoje temos instrumentos de manipulação genética, o CRISP, premiado com o Nobel da Química de 2020, que nos permite alterar, para o bem e para o mal, o nosso destino genético. Temos medo de fazer monstros como fez o Doutor Frankenstein, no romance Frankenstein ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley, em 1818. Lembro a frase de Goya: «O sono da razão gera monstros.»
3- Inteligência artificial (IA): A IA desenvolveu-se vertiginosamente nos últimos anos. Há quem diga que esta à vista do fim do ser humano, substituído por máquinas, que são mais inteligentes e imperecíveis. O fim da humanidade aconteceria num “ponto de singularidade”, seguido da era do transumanismo. Personagens mediáticas como Stephen Hawkings e Elon Musk chamaram a atenção para o perigo de um futuro transhumano. Julgo que os computadores não nos podem substituir por não terem paixões, crenças, consciência, mas sei que o assunto é discutível.
Estes perigos não são só de agora, são também de outrora. O engenheiro norte-americano de origem austríaca (portanto, com a mesma pátria do Freud) Hans Moravec, da Universidade de Carnegie-Mellon, previu no seu livro Homens e Robôs. O futuro das inteligências humana e robótica (1988), que robôs inteligentes iriam acabar por prevalecer sobre os seus criadores, uma supremacia que deveria ocorrer cerca do ano 2040. Por essa altura, poder-se-ia fazer o download da mente humana para dentro de um robô, assegurando a cada um de nós assim uma vida eterna. Seria a morte da morte, de Tanatos, mas receio que também o fim de Eros. Moravec confessa que nunca percebeu por que razão o Pinóquio, um boneco de pau, queria ser humano. Ele em criança sonhava ser Pinóquio, o que lhe garantia uma recuperação fácil na oficina do Mestre Gepeto em caso de um eventual acidente. O professor de Robótica diz que as pessoas preferirão ser robôs, com o hardware imperecível, e um software com capacidade para expansão para além dos actuais e frágeis limites humanos. Não sei, eu prefiro ter carne e osso…
Consideradas todas essas ameaças, estará à vista o fim da humanidade? Não creio. Há muitas razões para afirmar que o agora é melhor do que outrora (vivemos mais e melhor, em boa parte graças ao desenvolvimento da ciência e tecnologia!) e, a continuar este estado de coisas, o melhor ainda está para vir. Daqui por uns tempos, o agora vai ser melhor do que o outrora. Julgo que saberemos fazer ciência com consciência e, portanto, que, seremos capazes de aprender com os erros – estou-me a lembrar, por exemplo, do médico chinês que usou o CRISP em bebés, tendo sido condenado a prisão – que seremos capazes de usar o conhecimento para melhor, como temos feito até aqui. Será a cultura, ou se quisermos a civilização, que nos ajudará.
No entanto, a nossa humanidade - o conjunto de marcas distintivas que nos fazem humanos - é muito antiga, não sendo por vezes fácil a sua relação com as novidades científico-tecnológicas que invadem a nossa vida.
O outrora sempre nos serviu de orientação no agora, mas temos, cada vez mais, de incorporar o futuro no agora, isto é, temos de saber judiciosamente usar a previsão de acções futuras na nossa acção actual. No mundo e ainda mais em Portugal, o país do "logo se vê," em que se transforma rapidamente o agora em outrora, deixando tudo como está. Faço aqui uma vénia a José Gil que, em Portugal: O medo de existir, fala, usando ferramentas da psicanálise, do problema da “não-inscrição” e da nossa dificuldade em lidar com o futuro. Numa cultura como a alemã, planeia-se tudo ao mínimo pormenor, mas, entre nós, vive-se do improviso e de expedientes. Vive-se do «desenrasca».
Freud, Einstein e a guerra
Sobre o futuro tem pairado no mundo, desde sempre, o problema da guerra. Gostaria de trazer aqui a posição de Freud sobre o assunto. Sei que há muita contestação à cientificidade de Freud, li o Anti-Freud de Michel Onfray, em português com prefácio de José Luís Pio de Abreu. Não conheço bem a sua enorme obra, mas gosto de algumas coisas dele…. A minha editora é a Gradiva, um nome que vem de livro de Freud. E um dos meus heróis da ciência é - já falei dele - Einstein, que escreveu um livro com Freud. Einstein foi correspondente e amigo de Freud, o que não significa que tenha aderido às suas ideias na psicanálise. Os dois eram judeus e ateus: Freud fez a psicanálise da religião em O Futuro de uma Ilusão (1927) e Einstein não acreditava num Deus pessoal, embora tivesse uma religião que podemos dizer cósmica: um pouco à maneira de Espinosa, acreditava na harmonia do mundo. Segundo Freud, a humanidade devia aceitar que a religião é apenas uma ilusão para sair de seu estado de infantilismo: ele relaciona esse fenômeno à criança que deve resolver o seu complexo de Édipo: "essas ideias [religiosas], que professam ser dogmas, não são o resíduo da experiência ou o resultado da reflexão: são ilusões, a realização dos mais antigos, mais fortes, desejos mais urgentes da humanidade; o segredo de sua força é a força desses desejos. Já sabemos: a terrível impressão da angústia da infância despertou a necessidade de ser protegido―protegido por ser amado―uma necessidade que o pai satisfazia."
Freud nasceu em 1856 e morreu em 1939. Einstein nasceu em 1879 e morreu em 1955, pelo que era 23 anos mais novo. Einstein e Freud escreveram, como referi, em conjunto um livro, saído em 1933, há exactamente 90 anos (a edição alemã foi logo proibida pelos nazis, subidos nessa altura ao poder), que resultou de cartas entre eles, trocadas em 1932, com o título Porquê a Guerra?, um título de novo desafortunadamente bastante actual, pois reacendeu-se a guerra do Médio Oriente em acrescento à guerra da Ucrânia, para não falar de outros conflitos, reais ou potenciais. O livro surgiu a partir de um debate no seio da Sociedade das Nações (que existiu entre 1929 e 1946), para o qual Einstein foi escolhido. O sábio escolheu tratar o tema da guerra e escolheu para correspondente Freud, bem mais velho do que ele, que considerava uma das pessoas que melhor escrevia em alemão. Tinham-se encontrado uma só uma vez, em 1927 em casa do filho de Freud em Berlim. Freud comentou: "Ele é alegre, confiante e gentil, e entende tanto de psicologia quanto eu de física, pelo que tivemos uma conversa muito agradável". Einstein — quando foi para isso procurado — recusou-se a apoiar a candidatura ao Prémio Nobel que Freud tanto ansiava (foi nomeado 13 vezes sem nunca o ganhar!). Disse Einstein: "Apesar da minha admiração pelas realizações engenhosas de Freud, hesito em intervir neste caso. Não me consegui convencer da validade da teoria de Freud", disse o físico em 1928. Mas a admiração dele foi crescendo ao longo do tempo: agradeceu o último livro de Freud, Moisés e o Monoteísmo, com grandes encómios.
A missão deles era compreender o incompreensível: Porquê a guerra? Escreveu Einstein:
"A pergunta é: existe uma maneira de libertar os homens da fatalidade da guerra? É sabido que, com o progredir da ciência moderna, responder a esta pergunta tornou-se uma questão de vida ou de morte para a civilização por nós conhecida; e no entanto, apesar de toda a boa vontade, nenhuma tentativa de solução deu qualquer resultado visível.”
No caso de Einstein, o assunto que normalmente ocupava os seus pensamentos, a física, "não ajuda a discernir os obscuros recessos da vontade e do sentimento humano", de modo que não podia fazer mais do que pedir a Freud pudesse iluminá-lo com o "seu amplo conhecimento da vida instintiva humana". Perguntou, mais adiante: "Existe possibilidade de controlar a evolução psíquica dos homens de modo a tornarem-se capazes de resistir às psicoses do ódio e da destruição?"
Freud era um pessimista inveterado. Michel Onfray em Anti-Freud sumaria assim «o quadro freudiano da miséria estrutural dos homens”: “A felicidade não é possível, só existem breve e decepcionantes ilusões hedonistas; todas as hipóteses para criar bem-estar naufragam no desengano, na desilusão, na decepção; a maior felicidade concebível confunde-se com a menor dor possível; as soluções colectivas, comunitárias, altruístas, estão vocacionadas para falhar; o amor aumenta os riscos de tudo quanto é pior; o casal e a família aumentam as potencialidades de sofrimento; a política não pode de modo algum contribuir para a felicidade da Humanidade (…) Freud não pára de o afirmar: o pior está garantido.”
Freud tinha escrito durante a Primeira Guerra Mundial dois textos, Considerações actuais sobre a guerra e a morte (1915) e Caducidade (1915), que foram incluídos no livro Porquê a guerra?. Tinha também escrito O Mal-estar da Civilização (1930), no original Das Unbehagen in der Kultur, uma obra em que discute o que considerava um enorme choque entre o desejo de individualidade e as expectativas da sociedade. Como já tinha dito em O Futuro de uma Ilusão, Freud defende em O Mal-estar da Civilização que a civilização deve apelar para valores morais para garantir a sua integridade e proteger-se das inclinações destrutivas individuais. Conclui esse livro dizendo:
“A questão decisiva para a espécie humana parece-me ser se e em que medida o seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação da sua vida comunitária causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Pode ser que, neste aspecto, precisamente o tempo presente mereça um interesse especial. Os homens ganharam controle sobre as forças da Natureza a tal ponto que, com a ajuda deles, não teriam dificuldade em exterminar-se uns aos outros até o último homem. Eles sabem disso e daí vem grande parte da sua atual inquietação, da sua infelicidade e do seu humor de ansiedade. E agora é de esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestiais’, o eterno Eros, se esforce para se afirmar na luta contra o seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? “
Em resposta ao pedido do director da Liga das Nações, Freud começou por se tentar esquivar: "Toda a minha vida tive de dizer às pessoas verdades difíceis de engolir. Agora que estou velho, certamente que não os quero enganar." Mas Einstein assegurou-lhe que pretendia uma “resposta psicologicamente eficaz e não optimista.” Depois de descrever a constância da belicosidade da espécie humana desde que ela existe sobre a Terra, Freud defendeu, na sua carta a Einstein, sem deixar margem para dúvidas, que "seriam inúteis os propósitos para eliminar as tendências agressivas dos homens." E terminou com uma pergunta e uma esperança:
"Durante quanto tempo deveremos esperar até que os outros se tornem pacifistas? É difícil dizê-lo, mas talvez não seja uma esperança utópica a de que esses dois factores — a atitude cultural e a angústia justificada face às consequências da guerra futura — ponham fim aos conflitos bélicos num prazo previsível. É-nos impossível adivinhar por que caminhos ou desvios se conseguirá tal fim. Por agora, só podemos dizer: tudo o que fomente a evolução cultural actua contra a guerra."
De onde vem a agressividade humana? Em 1923 Freud escreveu a últimas das suas grandes obras psicanalíticas O Eu e o Id, no original Das Ich und das Es, em que separa o id (isso, ele) do ego e do superego, uma separação diferente da que tinha feito entre consciência e inconsciência. O id é o nosso lado animal, totalmente inconsciente. É a porção inconsciente da psique que opera com base no "princípio do prazer," sendo a fonte dos impulsos básicos; busca prazer e gratificação imediatos. E o ego tinha uma parte inconsciente. O superego era totalmente consciente: era o ego com valores morais. A comparação freudiana entre o id e o ego é entre um cavalo e cocheiro. Freud reconheceu que o uso do termo id deriva dos escritos de Georg Groddeck, o médico alemão pioneiro da medicina psicossomática. Não falte quem veja hoje a presença do id na agressividade que inunda as redes sociais.
Foi nesse ano de 1923 que Freud começou a sentir a proximidade da morte: desenvolveu um cancro do maxilar que só em 1939 o iria vitimar, no ano em que publicou o livro sobre Moisés. Os médicos adiaram-lhe a notícia do cancro com receio que ele se suicidasse. Mas nos dias finais deve ter havido um pacto entre médico e doente, que levou a que o primeiro lhe administrasse uma dose fatal de morfina.
Grandes medos e aproximações psicanalíticas
Vejamos a relação das ideias freudianas com alguns dos nossos grandes medos.
1) Perante as alterações climáticas, muita gente tem medo do futuro, em particular os jovens. É um problema urente que nos devia mobilizar a todos, psicanalistas incluídos. Lembro um episódio da Segunda Guerra Mundial. Numa reunião da Sociedade Psicanalítica Britânica durante o Blitz de Londres os psicanalistas debatiam as origens do ódio e da agressão, até que um membro chamou a sua atenção para as consequências demasiado reais, observando: “Gostaria de salientar que há um ataque aéreo a acontecer.” Pois bem: as alterações climáticas é um raid que nos está a acontecer. Podemos proteger-nos, podemos? Quanto mais cedo fizermos, melhor será. Os psicanalistas, juntamente com outros terapeutas, podem não só chamar a atenção para as ameaças colocadas pelas alterações climáticas como ajudar a decifrar as defesas mentais que impedem as pessoas de responder às alterações climáticas. Por que há tantos negacionistas quando o problema na ciência está consensualizado? O facto de muita gente estar cientes das mudanças climáticas e seus efeitos, mas fazerem pouco ou nada a esse respeito, sugere a “dissociação”, o conceito freudiano que explica como enterramos traumas no inconsciente. Freud disse que as pessoas mostram um comportamento infantil em vez de adulto como mecanismo de defesa para lidar com situações de stress.
2) Quanto à genómica: lembro que o mendelismo foi redescoberto em 1900, o ano da Interpretação dos Sonhos. Darwin era um seguidor de Darwin, tal como Marx. Reconhecia o papel da hereditariedade nas doenças mentais. Hoje com a genómica, começamos a compreender melhor da genética em certas doenças mentais. Será que intervenção genómica precoce pode aliviar ou eliminar doenças mentais. Estamos no domínio da bio-utopia. Quanto ao medo de Frankenstein, não há dúvida que essa criatura representa o nosso lado negro, os monstros dentro de nós, mas lembro que a criatura se transforma num monstro destruidor só porque os homens o discriminaram. Há várias leituras psicanalíticas do livro de Mary Shelley, um livro tão actual agora como outrora.
3) Finalmente, quanto à IA, ela desde o início tem sido utilizada em psicologia e hoje há cada vez mais programas que simulam consultas psicológicas e psicoterápicas. Um truque consiste em fazer perguntas a partir de afirmações do cliente…. Mas o uso hodierno de IA na psicologia vai muito além. Dou outro exemplo: para diagnóstico de saúde mental, algoritmos de IA podem ser usados para analisar dados de testes psicológicos, históricos de pacientes e dados biométricos. Mas há legítimos receios quanto ao futuro, designadamente a ideia de que robôs ou software de IA funcionem para conversar ou interagir com humanos de uma maneira nefasta para estes. De facto, isso já hoje acontece. Sei que há a questão das emoções, mas, ainda que de forma parcial, a IA pode analisar e compreender as emoções humanas. Os robôs já estão a ajudar pessoas com problemas de saúde mental. E, perguntarão, na área, obsessiva em Freud, do sexo? Poderão os robôs fazer alguma coisa? Sim, já há robôs sexuais, que poderão ser o motor do negócio da IA. E, finalmente, há a grande questão da consciência -e, portanto, da inconsciência – que ainda é um mistério, apesar de todos os avanços da IA. Não sabemos pura e simplesmente como funciona a consciência.
1973 e o futuro
Para finalizar, uma nota sobre o ano de 1973, ano em que foi fundada a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, quando o regime marcelista se aproximava do fim. Foi o ano em que houve a guerra do Yom Kippur no Médio Oriente e, em relação coma guerra, uma grave crise energética. O regime mudou em Portugal. Mas a guerra continua no mundo, a crise energética também. Foi outrora, mas parece que foi agora. Mas há coisas que, felizmente, mudaram. Lembro que foi nesse ano que a Associação Americana de Psiquiatria removeu a definição de homossexualidade como um transtorno mental da 2.ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-II). Egas Moniz, em A Vida Sexual. Fisiologia e Patologia, original em dois volumes de 1901 e 1905, que passou a certa altura a incluir referências a Freud (o Nobel português foi pioneiro na sua recepção entre nós, ao falar dele, pela primeira vez, na sua lição inaugural de Neurologia na Universidade de Lisboa em 1915), apresentou a homossexualidade como uma doença.
A propósito do Prémio Nobel, lembro que em 1973 o Nobel da Medicina de foi para os etologistas austríacos Karl Von Frisch e Konrad Lorenz, e para o seu colega holandês Nikolaas Tinbergen. Todos eles fizeram progressos no conhecimento dos instintos animais de que Freud falou. E é curioso que o Nobel da Medicina de 2023 tenha ido para as investigações no domínio da genética da húngara Katalin Karikó e do norte--americano Drew Weissman que nos permitiram em tempo recorde produzir uma vacina eficaz contra uma epidemia largamente inesperada.
Como será o mundo em 2073? O futuro não se pode prever por causa da complexidade do humano. Parece ser impossível uma teoria geral da natureza humana, uma teoria que Freud ensaiava, na óptica dele, de uma maneira científica. As questões últimas da natureza humana não encontram resposta na ciência. Há leis na física, mas não sei se algum dia haverá leis para os homens.
O filósofo russo-britânico Isaiah Berlin, num texto sobre Moses Hess, um filósofo alemão do século XIX, socialista e sionista, escreveu:
«Um sentido de simetria e regularidade, e um dom para dedução rigorosa, que são pré-requisitos de aptidão para algumas ciências naturais, irão, no campo da organização social, a menos que sejam modificados por uma grande dose de sensibilidade, compreensão e humanidade, conduzirão inevitavelmente a terrível agressão, por um lado, e ao sofrimento indescritível, por outro.»
Além de ciência, é preciso bondade. É preciso acima de tudo humanidade. Einstein afirmou-o no manifesto contra as armas nucleares que assinou com o matemático e filósofo britânico Bertrand Russel em 1955, um documento com outros autores que foi o seu último escrito: “Dirigimo-nos a vós como seres humanos. Recordai-vos da vossa humanidade e esquecei tudo o resto.”
2 comentários:
Agora pergunto: por que razão esta problemática lhe ocupa tanto espaço mental? Estranho! Uma fonte de informação para quem, para quê, com que intuito?
Com a agravante de quem está debaixo de lupa (supostamente científica, com todas as indeterminações, imprevisibilidades, inconsistências de que sofre a psicologia) não se poder defender explicando (não sei a quem, nem por que raio...) a pessoa que realmente é.
Vire o espelho psiquiátrico para si e aplique nele toda a sua bondade.
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