Por Ana Grave
Desde 2014 que a literatura tem vindo a perder peso nos Programas, substituídos pelas Aprendizagens Essenciais da disciplina de Português, seja no 3.º Ciclo do Ensino Básico, seja no Secundário.
A título meramente exemplificativo, comparemos as orientações do Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico, publicadas em 2015, com as Aprendizagens Essenciais em articulação com o Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, documentos que foram homologadas em 2018. Debruçar-nos-emos sobre as orientações fornecidas pelos dois documentos para o 7.º ano de escolaridade.
Em 2015,
os alunos teriam de estudar, na íntegra, três contos literários de seis que lhes eram propostos; um conto tradicional português de dois propostos; um texto dramático de um de dois autores propostos. A partir deste ponto, numa nota de rodapé, o Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico esclarece que “o termo 'texto' referir-se-á a excertos que tenham unidade, algum tipo de autonomia temática e uma extensão de, pelo menos, duas páginas”.
Assim, os excertos a analisar serão:
- de A Substância do Amor e outras Crónicas, de José Eduardo Agualusa, como exemplo de texto de autor de país de língua oficial portuguesa;
- de História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda na tradução de Pedro Tamen ou de A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, na adaptação de António Pescada, ou de Sexta‐Feira ou a Vida Selvagem, de Michel Tournier como exemplos de textos de autores estrangeiros
- de Uma Mão Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma, de Irene Lisboa, ou de O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou de Dentes de Rato, de Agustina Bessa‐Luís ou de Odisseia Contada a Jovens, por Frederico Lourenço como exemplos de autores de literatura juvenil.
As propostas são diversificadas e caberia ao professor escolher os excertos das obras que considerasse mais adequadas ao seu contexto escolar.
No que diz respeito à poesia, os professores teriam de lecionar doze poemas de oito autores diferentes, escolhidos de entre trinta e nove poemas de treze autores diferentes.
Em 2018,
as Aprendizagens Essenciais referem, no domínio da educação literária, que “a leitura integral de obras literárias narrativas, líricas e dramáticas (no mínimo, nove poemas de oito autores diferentes, duas narrativas de autores de língua portuguesa e um texto dramático)” (p.8).
Verifica-se assim que do estudo de quatro textos narrativos passámos para dois, deixou de haver distinção entre conto tradicional e literário, não há referência explícita aos autores de língua oficial portuguesa, nem aos autores estrangeiros, nem aos de literatura juvenil. Do estudo de doze poemas passámos para nove e dos treze poetas propostos no Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico, passamos para oito.
Insolitamente, no Anexo 1, das Aprendizagens Essenciais/Articulação com o Perfil do Aluno, mantêm-se as categorizações definidas no Anexo 1, das orientações de 2015 (narrativas de autores portugueses, contos tradicionais, textos dramáticos de autores portugueses, autores de língua oficial portuguesa, autores estrangeiros e autores de literatura juvenil) assim como o número de títulos e de autores, propostos nesse documento.
Se o essencial são duas narrativas de autores portugueses, um texto dramático e nove poemas de oito autores diferentes, por que motivo a listagem não apresenta apenas as propostas consideradas essenciais e se manteve similar à do Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico?
Na introdução, das Aprendizagens Essenciais/Articulação com o Perfil do Aluno refere-se que
“no domínio da educação literária, pretende-se capacitar os alunos para a compreensão, a interpretação e a fruição de textos literários” (p. 2) ´
e que estes atinjam
“a capacidade de apreciar criticamente a dimensão estética dos textos literários, portugueses e estrangeiros, e o modo como manifestam experiências e valores”(p. 3).
Todavia não há qualquer referência aos autores estrangeiros nos domínios apresentados (Oralidade, Leitura, Educação Literária, Escrita e Gramática). Não obstante, no domínio da Educação Literária, aparece o item seguinte:
“Desenvolver um projeto de leitura que integre objetivos pessoais do leitor e comparação de diferentes textos (obras escolhidas em contrato de leitura com o(a) professor(a))” (p. 9).
Depreende-se que a escolha recaia sobre os livros do Anexo 1. Surpreendentemente, ao lermos as "ações estratégicas de ensino" orientadas para o Perfil dos Alunos desse domínio, indica-se que os livros a ler em função do projeto de leitura dos alunos, deve ter por referência a listagem do Plano Nacional de Leitura.
Ressalva-se, nesta mesma introdução, que a aula de Português deve ser orientada para o desenvolvimento da
“competência da leitura centrada predominantemente em biografias, em textos de géneros jornalísticos de opinião (artigo de opinião, crítica) e em textos e discursos da esfera da publicidade”(p. 3)
e que a educação literária privilegie
“aquisição de conhecimento de aspetos formais específicos do texto poético e do texto dramático, com progressiva autonomia no hábito de leitura de obras literárias e de apreciação estética” (p.3).
Deixaram de se referir os títulos de autores estrangeiros e deixou de existir distinção entre narrativas literárias, tradicionais ou juvenis. Então, se o desenvolvimento da leitura tem como base textos maioritariamente não literários e a educação literária destaca “aspetos formais específicos”,
Como é que o aluno desenvolve competências de compreensão e interpretação para a complexidade do texto literário?
Como adquire vocabulário, expande conceitos, alarga horizontes?
De que nos serve conhecer o esqueleto se somos incapazes de ver a pessoa?
Qual o interesse de saber classificar o tipo de narrador, se não entendo o que ele narra?
Como fazer inferências a partir do texto publicitário se não aprendi a posicionar-me face a diversas perspetivas e modos de ver o mundo?
Como é que aprendo a pôr-me no lugar do outro sem uma história que me ensine a pôr-me nesse lugar?
Ao longo da escolaridade obrigatória os alunos vão perdendo o gosto pelo texto literário, restringindo-se a uma literacia funcional ao serviço duma sociedade de consumo, baseada em interesses económicos. Numa perspetiva mercantilista, a literacia crítica não só é uma inutilidade como um obstáculo à massificação de comportamentos.
Italo Calvino, em Porquê Ler os Clássicos?, ensina-nos que
“…as leituras da juventude podem ser pouco profícuas por impaciência, distração, e inexperiência das instruções para o uso e inexperiência da vida” mas também podem ser formativas porque dão “uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recorde pouquíssimo ou mesmo nada“ (p.8).
Torna-se, pois, evidente a premência do estudo da literatura na disciplina de português. Deve ser facultada aos alunos a possibilidade de compreender os textos literários, de os interpretar e de conhecer as interpretações que outros fizeram deles.
Corre-se o risco de termos de enfrentar textos que denunciam os nossos erros, preconceitos e enganos mas também encontraremos velhos textos premonitores do presente e até do futuro. Poderemos identificarmo-nos, rejeitar ou apenas compreender discordando do comportamento e de valores de certas personagens. Encontraremos as palavras que expressam o que queremos dizer e retratam o que sentimos. Ser-nos-á fornecida uma panóplia de caracteres e tábuas de princípios sobre a qual podemos construir a nossa própria identidade e reconhecer a dos outros.
Restringir a literatura a excertos, descurar o tempo necessário para a compreensão e reflexão sobre uma narrativa, uma peça de teatro, ou um poema é limitar a aprendizagem e atrofiar o desenvolvimento cognitivo, pois o texto literário é uma via privilegiada “de acesso a ideologias, a sistemas éticos ou a formas particulares de expressão emocional”, conforme José Morais refere, a propósito da leitura, em A arte de ler (p. 103).
Como toda a criação artística, a literatura obriga à reflexão e propõe escolhas que se querem conscientes e podem ser incómodas.
Daí que Fernando Savater em O valor de educar, o valor de instruir aponte a dificuldade e a urgência em decidir se queremos formar “competidores aptos para o mercado de trabalho” ou “homens completos” (p.11).
Em 1949, George Orwell escrevia nos apêndices da sua obra 1984:
“A Novilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pensamento, propósito indiretamente servido pela redução ao mínimo da gama das palavras” (p. 300).
Em 2023, a desvalorização do texto literário, a proliferação de mensagens automáticas, emojis e afins não apontarão também para o limitar o número de palavras conhecidas e restringir o campo do pensamento?
Ana Grave
Professora de Português,
Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra
Professora de Português,
Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra
2 comentários:
Tivesse a maioria dos professores o bom senso de Ana Grave e outro galo cantaria nas nossas escolas básicas e secundárias. Assim, o que dizer de quem se deixa prender por camisas de forças, como são as aprendizagens essenciais e o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória, e se amodorra no seu cantinho do galinheiro ?!
Eles estão a transformar as nossas escolas em galinheiros!
Os homens e mulheres de boa vontade precisam de se unir, dar um murro na mesa, e fazer das nossas escolas rampas de lançamento para todos aqueles que querem voar mais alto do que galinhas!
Prezado Anónimo, ultimamente tenho usado muito a expressão "bom-senso esclarecido". Ana Grave deixa-nos um bom exemplo. Antes de reagirmos (emocionalmente), vamos ver, vamos estudar, vamos pensar... e depois decidamos o que é melhor, o que está certo, o que é bom, o que beneficia a aprendizagem, os alunos... o mundo. Cumprimentos, MHDamião.
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