domingo, 8 de outubro de 2023

GUERRAS, GUERRAS, GUERRAS

Por Eugénio Lisboa
Either man will abolish war, 
or war will abolish man.
Bertrand Russell

A primeira guerra mundial (1914.-1918) foi uma medonha carnificina, com a qual todos perderam, vinte milhões morreram, entre militares e civis, imensos ficaram mutilados, física e mentalmente, e alguns de boa vontade acharam que este açougue iria servir de vacina contra futuros holocaustos, porventura mais mortíferos. 

Outros, até, que tinham experimentado o odor fétido da podridão dos cadáveres, nesses esgotos, que eram as trincheiras, infectadas por ratos e piolhos (Barbusse, Vercel, Dorgelès, Remarque, Duhamel, este, como médico), escreveram assinaláveis e inesquecíveis livros, com o objectivo de imprimirem, com vigor, nos imaginários atormentados dos sobreviventes, a recordação do horror que convinha, para todo o sempre, evitar. Jean Giono, grande romancista francês, enorme prosador e destemido ser humano incapaz de matar, andou, contra toda a probabilidade, quatro anos daquela guerra, persistentemente vivo e de espingarda ao ombro, recusando-se a disparar um tiro fosse contra quem fosse. 

Da sua companhia, sobreviveu ele e o capitão da mesma. Dos seus admiráveis Écrits Pacifistes, extraio esta curta e impressiva passagem:
“Eu não consigo esquecer a guerra. Gostaria de a esquecer. Passo, por vezes, dois dias ou três sem pensar nisso e, bruscamente, revejo-a, sinto-a, oiço-a, sofro-a mais uma vez. E tenho medo. Esta noite é o fim de um belo dia de Julho. A planície, lá em baixo, tornou-se completamente arruivada. Vamos cortar o trigo. O ar, o céu, a terra estão imóveis e calmos. Passaram-se vinte anos. E, vinte anos depois, apesar da vida, das dores e dos momentos de felicidade, não me sinto lavado da guerra. O horror desses quatro anos está sempre comigo. Trago comigo a marca deles. Todos os sobreviventes carregam essa marca.”
A marca foi de tal fundura, que Giono jurou nunca mais participar em guerra nenhuma e cumpriu-o. E pagaria a factura pesada por ter recusado fazê-lo, por ocasião da segunda guerra mundial, não tendo esquecido os horrores da primeira: REFUS D’OBÉISSANCE! Roger Martin du Gard que acabara de ter um respeitável mas modesto triunfo com a publicação do seu romance JEAN BAROIS, no ano anterior, e viria a celebrizar-se com a sua admirável saga familiar, LES THIBAULT, fez a guerra no serviço de ambulâncias, isto é, recolhendo os feridos, estropiados e moribundos, sinistro corolário do pior que a aventura humana tem a oferecer: a guerra, como pífia e mortífera forma de solucionar conflitos de interesses. 

O contacto quotidiano com essa paisagem de um absurdo goyesco e sangrento, fá-lo-ia, como a Giono, considerar que a guerra era o mal absoluto, não a aceitando, em situação nenhuma, como solução de desentendimentos. E manteve esta resolução, mesmo durante os primeiros tempos da guerra contra Hitler. E só, quando informações fidedignas lhe chegaram ao conhecimento, sobre o que o nazismo significava, decidiu que este talvez viesse a provar ser um mal ainda superior à guerra. Duhamel, médico e escritor e amigo de Martin du Gard, de asa também ferida, ao contacto com os mutilados e moribundos do conflito, escreveria páginas alucinantes sobre aquele horrível sorvedouro de sangue. 

A Europa terá, ali, perdido milhares de promissores talentos, pondo fim à sua supremacia no mundo. E terá perdido, até, alguns homens de génio, ainda em embrião. É que a guerra tem só uma virtude: é democrática, mata, por igual, imbecis e homens de valor. A guerra não é EXCLUSIVA, pelo contrário, é assombrosamente INCLUSIVA. Seja como for, um punhado de homens, um pouco por toda a parte, tentaram dar ardente testemunho de todos aqueles horrores, para tentar que aquela guerra fosse a última das guerras. 

Porém, vinte anos depois, a humanidade estava envolvida noutra ainda mais mortífera. Será que o inferno não ensina a evitá-lo? Vivemos actualmente, com um sinistro magarefe aqui à porta, que a pretexto de históricos sonhos imperialistas e saudoso do tempo de um império assassino e cheio de boa consciência, encetou uma violação do direito internacional, invadindo um vizinho que o incomodava e dava jeito incorporar no seu seio ansioso por maior volume. 

Há quem, no Ocidente, use de uma filologia enviesada e assaz masoquista, para justificar todas as agressões, violações e genocídios de um agressor que é alegadamente “pessoa de bem”. Talvez valesse a pena reeditar e mantê-las no mercado, bem à vista, as obras de autores que souberam dar veemente notícia dos horrores da guerra.

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

É com grande amargura e desgosto que penso que as guerras têm de ser encaradas como uma fatalidade, pelo menos, depois de começarem. São como as catástrofes que não somos capazes de evitar. No caso das guerras a catástrofe é o próprio “elemento” humano. Não é uma catástrofe como as naturais, que são desencadeadas por ocorrências físicas meramente mecânico-causais. No caso das guerras, a catástrofe não é apenas uma consequência da acção humana, é um objectivo clara e expressamente assumido.
Os que se preparam para a guerra e a desencadeiam nem sequer o fazem em segredo, porque antes de acontecer ela se anuncia, de variadas formas que os especialistas não podem ignorar. Dir-se-ia que a guerra começa muito antes de acontecer, como todas as catástrofes. Quem desencadeia uma guerra, sobretudo se é uma grande potência no xadrez internacional, sabe o que lhe pode acontecer e sabe o que lhe vai acontecer, porque o que puder acontecer-lhe vai acontecer-lhe e ela sabe. As catástrofes não duram sempre. Uma catástrofe não é um triunfo sobre nada, nem ninguém. No fim da catástrofe, triunfam os que sobrevivem.
Quem desencadeia uma guerra sabe que não sobreviverá a essa catástrofe, que vai ser derrotado e aniquilado pela derrocada dos explosivos que activou. As guerras, ainda antes de começarem verdadeiramente, já o são como ameaças das consequências que virão a ter. O amor, pelo contrário, quando começa não ameaça nada. Sabendo disto, os profissionais da guerra deviam evitar, até por dever profissional, promover condições que se tornarão trágicas para os outros, para aqueles que não gostam, nem precisam de guerras, porque viver e deixar viver é melhor do que impedir de viver.
Para fazer guerra, ou melhor, para desencadear uma guerra, é preciso mais, muito mais do que animalidade, ou instinto de sobrevivência. E é preciso mais, muito mais, do que racionalidade ou sentimentos.
A hostilidade, o ódio, o medo galvanizador, o calculismo e o ressentimento promovido e alimentado por narrativas delirantes, ou pelo delírio narrado, prefiguram de tal modo as ameaças do abismo, que a dinâmica política, militar e social é contaminada e arrastada pelo desespero de causa. A serenidade e a frieza tornam-se impossíveis no momento em que mais vantagem podiam ter e mais falta fazem.
Uma guerra não começa se não houver contendores, partidos, rituais, gregarismo, armas, embriaguez, crença nas representações das hostes, do inimigo e, se não houver um desejo de vitória pela força, há certamente um furor orquestrado para infligir dor e sofrimento.
Depois de começar, uma guerra é um monstro que não precisa de mais nada que o desejo de vingança, e esse vai crescendo sempre, nos beligerantes.
A guerra é humana. Paradoxalmente, é desumana. Por ser tão temível e tão horrível é que os humanos acreditam no poder da guerra.
Os humanos têm-se revelado incorrigíveis, ao longo da história, comportando-se como se estivesse nas suas mãos fazer a guerra, mas não a paz.

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