domingo, 8 de outubro de 2023

A FAMÍLIA DOS CINCO NOBEL

Meu artigo no último JL:

Outubro é o mês dos Nobel. Num prémio onde as mulheres são historicamente uma minoria, deve lembrar-se que a primeira mulher a ganhar um Nobel foi a física e química polaca Maria Skłodowska-Curie (1867-1934). Ela foi também a primeira e até hoje a única pessoa a ganhar essa distinção em duas disciplinas científicas: além de ter ganho o Nobel da Física, em 1903, com o seu marido, o físico francês Pierre Curie (1859-1906), e com outro físico francês, Antoine Henry Becquerel, ganhou, sozinha, o da Química em 1911. 

O prémio de 1903 foi atribuído pelas suas “pesquisas conjuntas nos fenómenos da radiação descoberta por Becquerel” e o de 1911 pelos “avanços na química com a descoberta dos elementos rádio e polónio, pelo isolamento do rádio e pelo estudo da natureza e dos compostos deste notável elemento.” A segunda distinção contemplou a continuação dos trabalhos sobre radioactividade que Maria desenvolveu após 1906, ano em que o marido morreu atropelado por uma caleche em Paris.

Se o casal Maria e Pierre Curie foi o primeiro a ganhar em conjunto o Nobel, o segundo foi o casal formado pela sua filha mais velha e pelo seu genro, Irène (1897-1956) e Frédéric Joliot-Curie (1900-1958), que receberam o Nobel da Química de 1935. A sua outra filha, Ève Curie (1904-2007; morreu com 102 anos!), que seguiu uma carreira nas artes e no jornalismo, casou com o jurista e diplomata norte-americano Henry Labouisse (1904-1987), o qual, como director-geral da UNICEF, a Organização das Nações Unidas para a Infância e Juventude, recebeu o Nobel da Paz atribuído aquela instituição em 1965. É, claramente, a família com mais prémios Nobel,  embora haja quatro outros casais nobelizados assim como sete duplas pai-filho (mas não ao mesmo tempo, excepto no caso dos físicos britânicos William e Lawrence Bragg, que trabalharam em colaboração; o filho é o mais jovem cientista Nobel de sempre: tinha apenas 25 anos!).

Maria Curie só adquiriu a nacionalidade francesa quando se casou com Pierre em 1895. Maria, que é o seu nome polaco, igual ao português (pronuncia-se “Mária”), passou a ser Marie. Nasceu em Varsóvia, filha de um professor de Física e Química e de uma educadora. Continuou a sentir-se polaca, tendo ensinado a língua às suas filhas, nascidas em Paris. A casa onde veio à luz é hoje um museu no centro histórico da capital polaca, que está na lista do Património Mundial da Humanidade. Trata-se de um 1.º andar de um edifício, na rua Freda, originalmente do século XVIII, que foi destruído intencionalmente pelos militares alemães durante o levantamento de Varsóvia em 1944, a revolta esmagada pelos nazis com a complacência do Exército Vermelho que avançava então sobre Varsóvia. Não há no museu muitas peças originais (vi um modesto vestido escuro que pertenceu a Maria Curie), mas há um bom registo fotográfico (destaco a foto de Maria a descer a escadaria da Casa Branca com o presidente Harding em 1921) e alguns objectos surpreendentes (destaco uma maquete do palco de um musical sul-coreano sobre Madame Curie). Pode ainda ver-se uma árvore genealógica da família Curie, a respeito da qual há uma interessante história a contar…

Em 1911, Maria Curie, já viúva, foi informada da atribuição do Nobel da Química no meio de uma enorme tempestade emocional. De facto, tinha sido revelada a existência de um affaire entre ela e o seu colega Paul Langevin (Maria foi a primeira professora da Sorbonne, ao ocupar a vaga aberta pela morte do seu marido). Maria era uma mulher livre, mas Langevin era casado e pai de filhos. A divulgação de cartas entre os dois originou um duelo à pistola entre Langevin e um director de um jornal (ninguém disparou). A cientista que tinha sido vangloriada pela imprensa gaulesa pelo seu Nobel de 1903, passou a ser vilipendiada, acusada de “ser uma estrangeira destruidora de lares franceses.” Um dirigente do Comité Nobel escreveu-lhe sugerindo-lhe que recusasse o prémio. 

Maria, aguentando corajosamente a vaga persecutória, decidiu ir a Estocolmo receber o galardão, frisando que uma coisa eram os seus trabalhos científicos e outra os assuntos da sua vida privada. Foi ajudada por amigos, entre os quais o matemático Émile Borel, que a recolheu, com as filhas, quando alguns populares já apedrejavam a casa da cientista. Depois do segundo Nobel, Maria passou por uma depressão. Rompeu a ligação com Langevin (que haveria de visitar Portugal em 1929 para divulgar a teoria da relatividade de Einstein), que, entretanto, fez um acordo de divórcio onde o nome de Maria não foi mencionado. O mais curioso nesta história é que uma neta de Maria Curie, a física Hélène Langevin-Joliot (n. 1927; tem hoje 96 anos), filha de Irène Curie, casou com um neto de Langevin, Michel Langevin, também ele físico. Parecia haver um “destino” de cruzamento dos genes dos Curie e dos Langevin… E a física parece estar nos genes: Hélène e Michel tiveram um filho astrofísico, Yves Langevin (n. 1951).

Uma marca dos Curie, para além dos Nobel, é a sua participação cívica e política. Pierre Curie, filho de um médico livre-pensador e anticlerical, foi um cientista que primou pela integridade. Maria Curie, que se distanciou do catolicismo familiar após a morte da mãe por tuberculose e de uma irmã (a mais velha de quatro irmãos) por tifo, foi exemplo de valores morais. Participou na Primeira Guerra Mundial, guiando carrinhas de raios X em socorro das tropas francesas, alimentou o desejo de independência da Polónia, alcançada em 1918 (Maria tinha deixado a Polónia em 1891, quando esta era parte do Império Russo, pelo que teve de aprender russo), e defendeu os direitos das mulheres. Irene e Frédéric foram defensores da França Livre na Segunda Guerra Mundial e, no pós-guerra, opositores à proliferação de armas nucleares. Irène foi, como a mãe, uma activista dos direitos das mulheres e Frédéric combateu na Resistência Francesa, tendo sido membro do Partido Comunista Francês. Finalmente, Hélène Langevin-Joliot também se opôs aos arsenais nucleares. 

Em resumo: os Curie foram – são! – uma família empenhada não apenas em questões científicas, mas também em questões sociais. A ciência não é uma ilha.

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